Sábado, 10 de Janeiro de 2015

Quatro notas de reflexão sobre o duro tempo presente

1 - Inevitáveis as manifestações do vício da repulsa pela pretensa "demasiada unidade" a propósito das manifestações de repulsa pelos actos terroristas em Paris. Há patrícios que não aceitam o cheiro da companhia de manifestantes de outras cores políticas. Isto tem tanta idade quanto a da velhice do sectarismo. Vão lá estar Passos Coelho, Merkel, Rajoy e quejandos? Então "que passem bem mas sem a minha companhia". Não querem sujar a sua pureza política (mas aposto que não se importariam de marchar, até em ordem unida se necessário e de cravo na mão, com os solidários do gulag e do muro de Berlim) mas limitam-se a aplicar a receita da cegueira de pacotilha marxiana que não consegue distinguir os níveis diferentes de exigência e de intervenção. A liberdade, nomeadamente a liberdade de expressão, é, deve ser, transversal à sociedade de cidadãos livres que queremos fortalecer. Cidadãos que podem discordar, e muito, em aspectos políticos e sociais mas que, por causa disso, não se deixam cegar pelo ódio social em desfavor da amplitude das trincheiras em defesa da liberdade. Se Merkel, Rajoy, Cameron, hoje e amanhã gritam presente na luta pela liberdade eu estou hoje e amanhã com eles porque eles estão comigo. Nesta questão. Por sinal, a principal questão em política. Não perceber isto é mero refúgio do velho sofisma da hierarquia entre liberdade e igualdade. Que já provou à saciedade no que deu.

 

2 - Custa muito a entender que quanto mais discordarmos, odiarmos até, o conteúdo de uma forma de expressão, mais empenhadamente devemos defender a sua livre existência e o seu direito de expressão? Se não temos interiorizado este princípio elementar de convivência, talvez, afinal, só nos falte uma kalashnikov para andarmos por aí a disparar.

 

3 - Não tenhamos receio de chamar as coisas pelos seus nomes. A esquerda europeia, incluindo a esquerda que se tem manifestado contra os assassinos de Paris, tem culpas em dois aspectos preocupantes da realidade multicultural europeia. Primeiro, pela condescendência defensiva e acrítica perante as vagas migratórias, abdicando tantas vezes, em nome da permissividade igualitária, da exigência de comportamentos cívicos de aplicação universal (para os nascidos localmente e para os imigrantes). Muito derivado do aspecto anterior, há aqui nítidas responsabilidades (por laxismo e omissão) desta esquerda demissionista (muitas vezes obscurecendo responsabilidades com argumentos de ordem social, nomeadamente os ligados à exclusão) para que a extrema direita xenófoba, chauvinista e racista, se aproprie dos medos relativamente à agressividade das minorias marginais que amplia o medo ancestral ao diferente e aos outros. Os recentes crimes em França mostraram, de uma forma chocante, como se deixou chocar os ovos da serpente nos nossos sítios e a forma despudorada, mas inevitável, como a extrema-direita tenta contabilizar a seu favor (a favor da sua propaganda, para já) os picos dos novos medos. Por exemplo, é aceitável que gente que integrou a luta armada do EI regresse aos seus locais de origem? É aceitável que em algumas mesquitas se pregue o ódio religioso e a jihad? É aceitável que se desenvolvam círculos confessionais prosélitos do radicalismo agressivo? Tomar medidas preventivas do terrorismo não é, não tem de ser, uma manifestação islamófoba. Pelo contrário, pode e deve integrar uma exigência de cidadania que requer para ser aceite um padrão mínimo de comportamento cidadão, mantendo a liberdade religiosa como uma esfera diferente e intocável. Para muçulmanos, judeus, católicos, budistas, ateus, o que sejam. Neste aspecto, os europeus estão até especialmente preparados, por experiência histórica, para meter em prática uma política de tolerância exigente. Porque, nos trajectos europeus, soubemos evoluir dos tempos cavernosos das Cruzadas, da Inquisição e do fascismo clerical, para o laicismo e a convivência inter-religiosa. Não devemos recuar deste patamar civilizacional. Nem deixar de exigir aos que vêm viver connosco que cumpram este caderno de encargos de convívio ou então zarpem para outras paragens. E discursos de exegese às condicionantes sociais que pretensamente explicam a exclusão social é, no caso, poeira para os olhos (como a poeirada que uma eurodeputada socialista levantou ao absurdamente explicar os crimes de Paris com a política austeritária) para esconder as reais motivações de comportamentos que longe da revolta e do ressentimento social são expressões claras de patologias comportamentais desenvolvidas à sombra da permissividade das sociedades europeias. No dia em que a esquerda europeia seja capaz de assumir este discurso de exigência talvez seja o momento em que a extrema direita, o populismo xenófobo, comece a descer a curva da popularidade eleitoral.

 

4 - É discutível a decisão de excluir a FN da manifestação de amanhã em Paris. Eu preferiria que não tivesse havido precipitação e se levasse a FN a autoexcluir-se pois assim arranjaram um precioso alibi para não comparecerem. E não tenho dúvida que muitos eleitores na FN não são fascistas (embora possam fascizar-se no eventual processo de radicalização da sociedade francesa, o que deve ser evitado) pois sabe-se bem (com base em estudos académicos sérios) que uma parte importante do eleitorado da FN é oriunda dos meios operários e antes votava PCF, tendo migrado nas preferências eleitorais das motivações do ódio de classe para as do ódio aos imigrantes. A precipitação leva a estas coisas. Como também a FN hoje pode dizer que, apesar da onda de indignação contra a proposta da dirigente da FN de reintroduzir em França a pena de morte que afinal foi isso mesmo que a polícia francesa fez ao abater a tiro os terroristas jihadistas.

Publicado por João Tunes às 22:35
Link do post | Comentar
1 comentário:
De jose lopes a 14 de Janeiro de 2015
Mais um notável texto do Autor do blog, que não conheço pessoalmente, onde venho regularmente sempre com proveito
Bem haja pela clarividência que revela, não receando chamar a atenção para cobardia, parece-me que é disso que se trata, de um esquerda que em nome do politicamente correcto se recusa a denunciar os comportamentos criminosos e medievais de certas franjas da imigração na Europa.

Comentar post

j.tunes@sapo.pt


. 4 seguidores

Pesquisar neste blog

Maio 2015

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

Posts recentes

Nas cavernas da arqueolog...

O eterno Rossellini.

Um esforço desamparado

Pelas entranhas pútridas ...

O hino

Sartre & Beauvoir, Beauvo...

Os últimos anos de Sartre...

Muito talento em obra pós...

Feminismo e livros

Viajando pela agonia do c...

Arquivos

Maio 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Junho 2013

Março 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Junho 2012

Maio 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

Fevereiro 2004

Links:

blogs SAPO