1 - Inevitáveis as manifestações do vício da repulsa pela pretensa "demasiada unidade" a propósito das manifestações de repulsa pelos actos terroristas em Paris. Há patrícios que não aceitam o cheiro da companhia de manifestantes de outras cores políticas. Isto tem tanta idade quanto a da velhice do sectarismo. Vão lá estar Passos Coelho, Merkel, Rajoy e quejandos? Então "que passem bem mas sem a minha companhia". Não querem sujar a sua pureza política (mas aposto que não se importariam de marchar, até em ordem unida se necessário e de cravo na mão, com os solidários do gulag e do muro de Berlim) mas limitam-se a aplicar a receita da cegueira de pacotilha marxiana que não consegue distinguir os níveis diferentes de exigência e de intervenção. A liberdade, nomeadamente a liberdade de expressão, é, deve ser, transversal à sociedade de cidadãos livres que queremos fortalecer. Cidadãos que podem discordar, e muito, em aspectos políticos e sociais mas que, por causa disso, não se deixam cegar pelo ódio social em desfavor da amplitude das trincheiras em defesa da liberdade. Se Merkel, Rajoy, Cameron, hoje e amanhã gritam presente na luta pela liberdade eu estou hoje e amanhã com eles porque eles estão comigo. Nesta questão. Por sinal, a principal questão em política. Não perceber isto é mero refúgio do velho sofisma da hierarquia entre liberdade e igualdade. Que já provou à saciedade no que deu.
2 - Custa muito a entender que quanto mais discordarmos, odiarmos até, o conteúdo de uma forma de expressão, mais empenhadamente devemos defender a sua livre existência e o seu direito de expressão? Se não temos interiorizado este princípio elementar de convivência, talvez, afinal, só nos falte uma kalashnikov para andarmos por aí a disparar.
3 - Não tenhamos receio de chamar as coisas pelos seus nomes. A esquerda europeia, incluindo a esquerda que se tem manifestado contra os assassinos de Paris, tem culpas em dois aspectos preocupantes da realidade multicultural europeia. Primeiro, pela condescendência defensiva e acrítica perante as vagas migratórias, abdicando tantas vezes, em nome da permissividade igualitária, da exigência de comportamentos cívicos de aplicação universal (para os nascidos localmente e para os imigrantes). Muito derivado do aspecto anterior, há aqui nítidas responsabilidades (por laxismo e omissão) desta esquerda demissionista (muitas vezes obscurecendo responsabilidades com argumentos de ordem social, nomeadamente os ligados à exclusão) para que a extrema direita xenófoba, chauvinista e racista, se aproprie dos medos relativamente à agressividade das minorias marginais que amplia o medo ancestral ao diferente e aos outros. Os recentes crimes em França mostraram, de uma forma chocante, como se deixou chocar os ovos da serpente nos nossos sítios e a forma despudorada, mas inevitável, como a extrema-direita tenta contabilizar a seu favor (a favor da sua propaganda, para já) os picos dos novos medos. Por exemplo, é aceitável que gente que integrou a luta armada do EI regresse aos seus locais de origem? É aceitável que em algumas mesquitas se pregue o ódio religioso e a jihad? É aceitável que se desenvolvam círculos confessionais prosélitos do radicalismo agressivo? Tomar medidas preventivas do terrorismo não é, não tem de ser, uma manifestação islamófoba. Pelo contrário, pode e deve integrar uma exigência de cidadania que requer para ser aceite um padrão mínimo de comportamento cidadão, mantendo a liberdade religiosa como uma esfera diferente e intocável. Para muçulmanos, judeus, católicos, budistas, ateus, o que sejam. Neste aspecto, os europeus estão até especialmente preparados, por experiência histórica, para meter em prática uma política de tolerância exigente. Porque, nos trajectos europeus, soubemos evoluir dos tempos cavernosos das Cruzadas, da Inquisição e do fascismo clerical, para o laicismo e a convivência inter-religiosa. Não devemos recuar deste patamar civilizacional. Nem deixar de exigir aos que vêm viver connosco que cumpram este caderno de encargos de convívio ou então zarpem para outras paragens. E discursos de exegese às condicionantes sociais que pretensamente explicam a exclusão social é, no caso, poeira para os olhos (como a poeirada que uma eurodeputada socialista levantou ao absurdamente explicar os crimes de Paris com a política austeritária) para esconder as reais motivações de comportamentos que longe da revolta e do ressentimento social são expressões claras de patologias comportamentais desenvolvidas à sombra da permissividade das sociedades europeias. No dia em que a esquerda europeia seja capaz de assumir este discurso de exigência talvez seja o momento em que a extrema direita, o populismo xenófobo, comece a descer a curva da popularidade eleitoral.
4 - É discutível a decisão de excluir a FN da manifestação de amanhã em Paris. Eu preferiria que não tivesse havido precipitação e se levasse a FN a autoexcluir-se pois assim arranjaram um precioso alibi para não comparecerem. E não tenho dúvida que muitos eleitores na FN não são fascistas (embora possam fascizar-se no eventual processo de radicalização da sociedade francesa, o que deve ser evitado) pois sabe-se bem (com base em estudos académicos sérios) que uma parte importante do eleitorado da FN é oriunda dos meios operários e antes votava PCF, tendo migrado nas preferências eleitorais das motivações do ódio de classe para as do ódio aos imigrantes. A precipitação leva a estas coisas. Como também a FN hoje pode dizer que, apesar da onda de indignação contra a proposta da dirigente da FN de reintroduzir em França a pena de morte que afinal foi isso mesmo que a polícia francesa fez ao abater a tiro os terroristas jihadistas.
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