Estes dois enormes intelectuais franceses marcaram a fornada da minha juventude. Empenhados e heterodoxos, geniais no pensamento e na escrita, acresce que também a luta antifascista portuguesa muito lhe deve de empenho solidário na denúncia dos crimes e outros desmandos da ditadura. No entanto, a forma empenhada como eles denunciavam, em pé de igualdade com a denúncia dos abusos praticados pela "direita mundial" (quer os do imperialismo americano assim como os abusos da força pelos israelitas), os crimes do domínio soviético cometidos numa parte importante do mundo, levavam a que, para os ortodoxos filo-soviéticos, Sartre e Beauvoir fossem vistos como intelectuais a quem em vez de os saudar se devia, perante eles, assobiar para o lado, evitando-os. No entanto, a prevenção a que o casal de intelectuais era votado quer pelos próceres da ditadura como pelo antifascismo comunista não evitava a sua profunda penetração entre as leituras dos jovens portugueses (os que eram estudantes, como é óbvio) que se iniciavam na vida cultural da década de 60 do século passado. Não fui excepção e também eu li muito Sartre nos meus verdes anos. E eram leituras muito estimulantes que tinham o condão de, sempre o entendendo muito parcialmente, desembocarem, mais do que em respostas (como acontecia com as cartilhas difundidas pelo leninismo doméstico), numa série multiplicante de perguntas.
O actual momento editorial em que se está a difundir, não sei porquê. várias obras de Simone Beauvoir, levou-me a descobrir (e a encantar-me) a obra da companheira de Sartre, obra esta que na década de sessenta me tinha passado ao lado. Um dos lados singulares desta descoberta é encontrar uma escritora que, comparando-a com Sartre (acto dispensável mas inevitável), surge como, pese embora ser uma pensadora muito menos densa, uma narradora de maior poder literário e ter uma escrita mais intemporal e mais impressiva. Além de que ler SB é uma etapa indispensável também para entender Sartre. Isto porque enquanto Sartre pensava sobretudo o mundo a SB olhava sobretudo as pessoas no mundo, particularmente os círculos que habitavam (que eram bastante vastos). E SB fazia essa observação muito bem e como uma lucidez apurada pois que o "contracto" de coabitação com Sartre era particularmente elaborado e depurado preventivamente de muitas das maleitas geradas nos hábitos e na sobrecarga de presenças, tudo enquanto prática de feminismo radical mas sereno e despojado de retórica programática. Sendo um casal que viveu junto durante muitas décadas, viviam em habitações separadas, encontrando-se ora na casa de um ora na casa do outro, quando dormiam juntos faziam-no em quartos separados, quando viajavam alugavam sempre quartos diferentes nos hotéis onde pernoitavam, não se eximiam a terem e desenvolverem os seus amores e paixões em paralelo à vida afectiva comum, não permitindo a penetração do ciúme. E de tal forma aquele estilo de vida livre em comum foi adoptado que Simone retrata como um dos sinais mais marcantes do início da demência de Sartre na entrada da sua velhice uma vez este se lhe ter dirigido tratando-a por "esposa". E, no entanto, apesar deste "contracto de relação amorosa" (ou, talvez antes, graças a ele), mantendo até ao fim os procedimentos estabelecidos, Simone viveu toda a profunda crise de velhice de Sartre e apoiou-o intensamente com o desvelo da mulher profundamente apaixonada.
Um dia destes, numa consulta a um dos médicos especialistas que me assistem e que partilha comigo o gosto pela leitura (de tal forma que os primeiros dez minutos das consultas com ele são consumidos em troca de impressões sobre as últimas edições, ficando os atendimentos clínicos a servirem de complemento), calhou levar comigo um livro de uma edição recente da Beauvoir. Isso serviu de pretexto para ele me confessar que tendo, em jovem, lido todo o Sartre, nunca lera Beauvoir, revelação que mostrava toda a semelhança com a minha história de relacionamento com a obra do célebre casal. Sendo nós, médico e doente, da mesma geração, com vivências idênticas (as do caldo das lutas estudantis da década de 60, eu em Lisboa e Porto, ele em Coimbra), aprofundando a questão, e tendo em conta que se os rapazes de então leram o máximo de Sartre e nada ou quase nada de Beauvoir, as raparigas que liam (as poucas que liam) leram algum Sartre mas devoraram muito mais Simone de Beauvoir e nela se inspiraram para estruturar o seu feminismo e os decorrentes estilos de vida. O caso não merece sondagem mas tenho que este exemplo de opções de leituras e alinhamentos terá muito a ver com a forma como os géneros se alinharam na formatação da sociedade portuguesa em termos de vivência homem-mulher.
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