Sexta-feira, 27 de Agosto de 2004

RELATIVIZEMOS (2)

democracia.jpg

Intervindo na troca de ideias sobre a situação em Angola que tenho sustentado com o João Abel Freitas, um comentador (que não se identificou) deixou esta judiciosa posição:

Tal como o João Abel de Freitas, também não sou adepto dos escrutínios de tipo "top-down" e hierárquicos. Os mecanismos de tipo "peer review" permitem estimular o envolvimento e, portanto, o comprometimento dos países em vias de desenvolvimento. Temos que acreditar, quase com fé, que este é o caminho.
Os métodos hierárquicos de tipo "top-down" podem ser facilmente confundidos com o unilateralismo dos neoconservadores americanos que tanto têm influenciado Bush. E, talvez pior do que isso, têm um leve odor a neo-colonialismo requentado e serôdio. De uma forma estilizada, podem conduzir ao seguinte:
- "Nós" definimos o modelo: Estado de Direito do tipo Z, Sistema Político do tipo Y, Modelo Económico do tipo X, modelo de participação da sociedade civil de tipo W;
- A "Pretalhada" come e cala! E se não obedecerem, pedimos ao Bush que os ponha na ordem.
Eu sei que nenhum dos Joões se revê neste "approach". Com visões diferentes, é certo, estão a dar o seu contributo (sem paternalismos neo-coloniais) para que África seja um continente melhor!


Não duvido da boa intenção (mas ele próprio falou em …) do alerta e da prevenção. Mas gostaria de dizer mais sobre o que penso. Se o alerta contra os malefícios das imposições de modelos e de “tipos X, Y, Z, W, etc” é claramente aceitável porque, no mínimo eles são violações de soberania, há aspectos de critério democrático a que não se pode fugir.

- Seja qual for o tipo (e a sua escolha compete aos órgãos de poder legislativo e constitucional democraticamente eleitos), qualquer sociedade democrática tem de ser suportada num Estado de Direito (no mínimo, igualdade perante a lei).

- Seja qual for o tipo (e a sua escolha compete aos órgãos de poder legislativo e constitucional democraticamente eleitos), o Sistema Político deverá assentar no princípio “um homem, um voto”, em sistema de escolha livre e verificada, garantindo o pluralismo e a alternância do exercício do poder.

- O Modelo Económico em vigor deverá corresponder a uma escolha sufragada pelo eleitorado.

- Seja qual for o tipo (e a sua escolha compete aos órgãos de poder legislativo e constitucional democraticamente eleitos) de participação da sociedade civil, ele não deverá ferir as liberdades fundamentais (de associação, de expressão, de manifestação) nem os direitos fundamentais da pessoa humana.

Resumindo, estamos entendidos que a escolha dos “tipos” para cada caso são actos de soberania exclusiva e popular, não devem ser importados e muito menos impostos. Mas nenhuma legitimidade pode resultar de uma vontade que não seja democraticamente emanada, decidida e aferida. E, no meu ponto de vista, é automaticamente ilegítimo e inaceitável seja qual for a decisão ou a escolha de tipo de modelo (por muita bondade intencional que a mova ou incrustação cultural em que se fundamente) que não assente na decisão expressa e democrática da vontade popular. Trate-se de fazer a vontade a Bush ou a quem quer que seja, inclusive a interesses internamente instalados.

Não é, tenho a convicção, o caso deste interveniente, mas estou farto de ouvir vozes clamando que o fracasso das democracias em África (e também nos países árabes) se deve a que os africanos (ou os árabes), cultural, social e economicamente, não estão preparados nem têm apetência por “modelos democráticos”, tendo o direito (e sendo preferível) que encontrem os “seus próprios modelos” segundo os seus usos e costumes, vindos das suas ancestralidades. Assim, a “democracia” seria uma ingerência, uma perversão e uma fonte de desequilíbrio e de conflito. Formas de organização social e política fora do princípio do poder emanado da escolha “um homem, um voto” (lema da luta de decénios de Nelson Mandela), podem ter raízes de cultura étnica aqui e ali, ou mesmo beberem nesta ou naquela religião, mas são sempre, e apenas, lastros ancestrais que colidem com o viver numa civilização partilhada. E lembro que a Declaração Universal dos Direitos Humanos é Universal, sim Universal. Como devem ser os princípios da legitimidade do poder. O poder de os “velhos” decidirem por todos, o poder de os homens decidirem pelas mulheres, o poder de o chefe de tribo decidir pela tribo e até por outras tribos consideradas “inferiores”, o poder de Um Partido decidir pela sociedade, só podem ser passado (e passado inscrito na fase pré-democrática da evolução dessas sociedades).

Pertencer a uma comunidade (no caso, a comunidade democrática internacional constituída pelos países cujo poder está legitimado pelo voto livremente expresso) exige a partilha de regras e de valores. Quem não o fizer que adira à comunidade dos “párias da democracia”. Sabendo, como sabemos, que democracia não dá qualidade (há, de facto, democracias bem imperfeitas e com apetências e práticas tiranas e distorcidas!), mas não há legitimidade fora dela. Por isto mesmo, é que digo que Chavez e Lula podem ser populistas detestáveis mas têm toda a legitimidade para governarem, enquanto Fidel Castro não tem um miligrama dela e, por isso mesmo, devia merecer o desprezo e a denúncia política de todos os que se situam no campo democrático, sem contemplações nem considerações relativistas face à sua valia como “opositor” de Bush e do imperialismo económico.

Infelizmente, a história recente está cheia de complacências e alianças de regimes democráticos, à esquerda e à direita, para com regimes tiranos e dispostos, em nome de interesses económicos ofendidos, a trocar “democracias hostis” por “tiranias amigas” (os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU foram os que mais praticaram este interesseirismo político e sem escrúpulos). A própria ONU tornou-se um albergue para “todos”, sem critério de rigor de avaliação na adesão a ela. Pior, falaciando ao não permitir a chamada “ingerência nos assuntos internos”. E de tal forma que um ditador que derrube um regime democrático, só muda (ou até nem muda) o embaixador na ONU e o seu estatuto mantem-se inalterável.

Uma comunidade aberta ao contrário dos seus valores é, inevitavelmente, uma comunidade fraca. Pior se as conveniências funcionarem como motor de adaptação dos princípios aos “momentos” X, Y, Z e W.


























Publicado por João Tunes às 01:54
Link do post | Comentar

j.tunes@sapo.pt


. 4 seguidores

Pesquisar neste blog

Maio 2015

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

Posts recentes

Nas cavernas da arqueolog...

O eterno Rossellini.

Um esforço desamparado

Pelas entranhas pútridas ...

O hino

Sartre & Beauvoir, Beauvo...

Os últimos anos de Sartre...

Muito talento em obra pós...

Feminismo e livros

Viajando pela agonia do c...

Arquivos

Maio 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Junho 2013

Março 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Junho 2012

Maio 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

Fevereiro 2004

Links:

blogs SAPO