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João Abel Freitas, depois de uma viagem a Luanda colocou no seu blogue interessantíssimos posts de reflexão sobre a situação vivida em Angola e reflectindo sobre a forma de aquele país ultrapassar os seus problemas e seguir na senda do progresso e da democracia. Com o título
Relativizando as Ideias, o JAF já vai no sétimo texto de reflexão.
Como o tema me motiva, coloquei aqui um post de discordância inicial (intitulado
Optimismo vindo de Angola) e tenho semeado no
Puxa Palavra os meus comentários de alimentação de polémica. Como os argumentos são de substância (e o JAF pretende, e eu louvo, dar alguma profundidade à reflexão) tenho por lá estendido o guardanapo e já mereci o justo reparo de outro comentador que andava para ali a colocar posts e não comentários.
No seu sétimo post, o JAF responde às minhas observações e discordâncias. Para lhe responder a preceito, já não me atrevi a ir lá aos comentários do
Puxa Palavra. Prefiro alargar-me por aqui, onde tenho privilégios de propriedade de espaço para comentar os seus últimos argumentos. Cá vai.
Caríssimo João Abel,
Agradeço a tua disponibilidade para prolongar este diálogo sobre um tema que julgo do maior interesse. Isto porque, queira-se ou não, estamos e estaremos ligados a África de língua oficial portuguesa. Pelos interesses, pela economia, pela língua
oficial (luta difícil esta de preservar este laço que é bem volátil), pelo sentimento, pelo que resultou de cruzamento de culturas, pelas vagas migratórias, enfim, tanta e tanta coisa.
O desporto é sempre um bom aferidor de como as coisas se passam ao nível dos sentimentos mais profundos da cultura disseminada e entranhada. Viu-se como os africanos, nesses países, viveram a carreira portuguesa no Euro 2004 e como tomam partido nas disputas clubistas cá da casa (uma vez, na Praia, calhou chegar uma hora antes de começar um Benfica-Sporting e fiquei atónito com o monumental engarrafamento das muitas dezenas de milhares de cabo-verdianos que, vindos da periferia - onde não há televisão -, equipados a rigor com as indumentárias dos dois clubes, se dirigiam em massa para os cafés da cidade onde havia televisão, vibrando com um fanatismo clubista capaz de fazer passar por anjo o mais fanático cá da terra). Infelizmente, o contrário não tem a mesma dimensão (e isso dirá alguma coisa ou, se calhar, muita coisa). Aqui não se acompanham as façanhas da Mutola ou da selecção de basket de Angola (e estou a falar de dois casos de afirmação no top do desporto mundial), por exemplo, com a mesma vibração com que os africanos acompanham as nossas venturas e desventuras. Mas acredito que alguma frieza notória que por aí se nota em
adoptar o Obikwelo como
nosso se deve também (mas não só) ao facto da distância perante a sua origem nigeriana. Fosse ele naturalizado mas nascido em Angola, Moçambique ou Guiné e não tenho dúvida que a
adopção seria mais intensa e menos valorizado (ou mesmo esquecido) o factor do local de nascimento. E é sintomático que, perante Mutola (uma das maiores atletas de todos os tempos), há alguma distância porque ela representa Moçambique. E aqui, ama-se quem de lá vem para aqui vestir (e servir) a farda verde-rubra ou a de um dos nossos clubes domésticos. Porque, o busílis é que, no conceito de pátria dos portugueses, pátria mesmo, a sério, é Portugal. Angola, Moçambique e por aí fora, ainda são vistas como fugas falhadas para fora da sombra da bandeira. Pátrias faz-de-conta, melhor dizendo.
Vem este desvio pelo desporto (tenho que me defender para evitar entrar na economia pela desproporção abissal entre os nossos saberes) a propósito do que muito justamente referes sobre os preconceitos que subsistem no olhar da maioria dos portugueses sobre África. E, sobre isso, assino por baixo dos primeiros parágrafos do teu sétimo post sobre Angola. E concordo em absoluto que, quem se conseguir libertar das ataduras do eurocentrismo (seja do fel ou do mel), tem obrigação de se chegar à frente.
No meu entender, esses jovens países têm problemas (gravíssimos) mas nós também os temos e não são pequenos (no olhar para eles e no saber entendê-los). E sabemos de onde tudo vem e em que quase tudo é alimentado. Tem a ver, julgo que seja claro, da demagogia (que não para de crescer, sobretudo desde a entrada do PP na coligação governamental) do fantasma dos crimes da descolonização. E que constitui uma poderosa cortina de fumo (que se suporta numa estratégia revisionista, cujo principal pilar é a recuperação da heroicidade, grandeza e justeza da guerra no ultramar) para incapacitar o entendimento do que foi a colonização, a impossibilidade histórica e política de a prolongar e a forma brutal e teimosa como fechámos todas as portas a uma outra transição que não a da via militar. Julgo que este trauma, ainda por cima com uma não despiciente base social de apoio (oficiais de carreira, ex-combatentes e colonos expelidos pela descolonização e pela resistência à descolonização), está com as feridas a abrirem-se e com gente a deitar-lhes sal para as avivar. E o principal problema será o encolher de ombros (que julgo detectar) e o calar dos que pensam diferente. Pela parte que me toca, direi que era o que faltava ter sido militante anti-colonial durante o fascismo para me calar agora que vivemos em democracia. Exactamente por assim pensar, é que, no meu blogue e desde que o lancei faz agora um ano, não desisto de defender o meu ponto de vista sobre a descolonização entendida como resultante de uma colonização real e que bloqueou, fechando-se sobre si própria. Tentando dar o meu testemunho, que é, afinal, a única forma que tenho de rentabilizar os dois anos da minha vida em que me mandaram servir o colonialismo na guerra colonial.
Entretanto, não vejo forma de se ter o mínimo de autoridade para se falar na colonização e na descolonização sem que não se deixe cair ao chão uma sequer de todas as muitas e duras críticas que se têm de fazer ao modo como o MPLA, a Frelimo e o PAIGC, consolidaram o poder, o usaram e o usam, a forma como desgovernam o seu povo (governando-se), os abusos de poder, a resistência à democratização e a forma como se desenvolve a acumulação de capital das burguesias nascentes. E, também neste aspecto, a minhas mãos ainda não se cansaram do teclado. Porque também acho que tenho autoridade para verberar aos actuais dirigentes daquelas cleptocracias a traição aos ideais, aos princípios e às inspirações com que esses Movimentos foram criados e pelos quais, muitos, em muitos lados, deram a vida e construíram causas hoje apunhaladas.
E, neste aspecto, a opinião pública e a comunidade internacional tem que ser exigente para com esses governos. Não se trata de interferir nas suas soberanias, mas sim de lhes exigir, se não querem ser párias da comunidade internacional democrática, provas de que respeitam os princípios democráticos, respeitam os direitos humanos, permitem as liberdades essenciais e a separação de poderes, não reprimem a existência de uma imprensa livre e a formação de uma opinião pública cada vez mais exigente. E, penso que sobretudo esses governos têm de provar que, em vez de alimentarem a corrupção, vão tomar medidas para a combater e permitir que ela seja combatida ao nível do aparelho policial e judicial. Por exemplo, é inadmissível (por lesivo do Estado e por decência) que, quando precisei de cambiar dinheiro em Luanda e teimando fazê-lo oficialmente num banco estatal angolano (junto ao Hotel Presidente), tenha atravessado a porta pejada de candongueiras de moeda, sentadas na soleira da porta e protegidas pela segurança do próprio banco, sendo recebido com enorme má vontade e olhar furioso pelo empregado bancário que me atendeu e que, a contra gosto, lá me fez o câmbio com péssimos modos a roçar a hostilidade (porque ao recusar o mercado informal eu estava a violar uma forma de ali se viver, tendo eu cometido uma espécie de agressão cultural e eventualmente ofendido interesses partilhados entre as candongueiras, os seguranças e os empregados do banco, gamando o Estado como é óbvio). Porque, convicção minha, enquanto a corrupção for um modo normal e vulgar de se viver nesses países, nunca neles a democracia vingará de forma sólida e haverá sempre a tendência de se voltarem às guerras civis e a novos ciclos de desgraças para os seus povos e para as nossas consciências. E também aqui concordo absolutamente contigo que têm de ser consolidados os passos de compromissos internacionais, através da ONU, da UA e da EU, para que se criem plataformas evolutivas mas controladas no cumprimento dos compromissos.
Dizes que sentes
dificuldades em separar, neste processo, a evolução africana, Angola, Moçambique, São Tomé, etc., a evolução da América Latina, etc., de todo um sistema que se esboroou a partir das transformações no Leste europeu, originando situações em termos de direitos humanos muito piores do que as que vigoram na dita sociedade ocidental, apontada como a sociedade a substituir. E aqui não entendi onde queres chegar. Sendo um facto aquilo que dizes, o que é que isso explica ou justifica? A opção de campo geo-político e geo-estratégico foi tomado pelos Movimentos/Partidos no poder. Não foi qualquer maldição que lhes caiu na rifa (embora o colonialismo português tudo tenha feito para os empurrar para o Leste). As direcções dos Partidos no poder até foram flexíveis e lestos a mudarem de campo quando ao socialista lhe deu o fanico. Mudaram rapidamente da cartilha
m-l para a integração acelerada na nova burguesia da
economia de mercado. As grandes vítimas (os povos) é que foram e são sempre os mesmos, antes com o socialismo científico, depois com o capitalismo selvagem, com devastadoras guerras civis pelo meio. Disse que não entendi mas acrescento que gostava de entender. Tu explicarás se a paciência ainda te sobrar depois de aturares este arrazoado.
Aquele abraço.