Sexta-feira, 27 de Agosto de 2004

RELATIVIZEMOS (3)

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Continuando no seu reflectir sobre as causas, os efeitos, as soluções e as esperanças para os problemas que, na África de língua oficial portuguesa (sobretudo em Angola), se colocam para a superação das suas dificuldades, o João Abel abordou agora a questão da falência do modelo nos países do Leste antes da queda do Muro e os seus efeitos nas antigas colónias portuguesas. E disse:

E se a Leste, apesar de mais desenvolvido e de mais sólido, sem passado colonial, deu o que deu - as guerras, o caos, a queda do nível de vida, o regresso mesmo a situações de pobreza impensáveis, leva-nos a questionar: tudo isto porquê?
No fundamental, porque se tratavam de sociedades, em que, quem falhou foram os regimes políticos na sua globalidade (concepção, teoria/doutrina, formas de acção), independentemente, de poder haver uns mais culpados que outros, de entre as elites governantes. E o que falhou foi impedir-se a participação das pessoas de forma ampla e livre na vida política, económica e social. Numa palavra não se deixou respirar, crescer e fortalecer a sociedade civil.
É evidente que “as guerras” de ontem e de hoje no centro e leste europeu têm uma base de descontentamento de alguns povos. Mas não podemos ser tão ingénuos para não ver aí também uma mãozinha (e que mãozinha!) de algumas potências ocidentais.
Em Africa, fenómenos deste tipo existem e a “exploração” do estado latente de descontentamento das etnias, sem querer entrar em domínios que não domino, também não foram usados.


Concordo em grande parte mas, para o debate aberto, a generalização ajudará mas não permite avançar grande coisa. É que até no Leste da Europa (apesar da formatação generalizada pelo modelo soviético), cada caso foi um caso. A perversão na ex-Checoslováquia foi uma coisa (a base estrutural era de uma sociedade altamente industrializada, sobretudo na região em que agora existe a República Checa, a classe operária tinha peso e o PC Checoslovaco era forte), na Roménia foi outra (havia uma estrutura semi-feudal e reaccionária que a levara a servir Hitler), os bálticos foram “incorporados” à força e arrancados ao centripetismo escandinavo (embora os marinheiros letões possuíssem uma forte tradição revolucionária de choque), a Alemanha de Leste resultou do “milagre” da reconversão de uma população intoxicada, derrotada nos seus mitos e ambições de supremacia e desmoralizada que pagou e purgou os “pecados nazis” através de um marxismo-leninismo duro. E por aí fora.

O que adianta então levar a generalização do modelo do “socialismo científico” para África? Alguma coisa no que respeita aos tiques de exercício totalitário, militar e brutal do poder, liquidando quem tropeçava no dilema "por nós ou contra nós". Mas, julgo, pouquíssimo mais. O marxismo-leninismo do MPLA, da Frelimo e do PAIGC (neste caso, nunca integralmente assumido, talvez pela inteligência e visão de Amílcar Cabral, curiosamente o marxista mais consequente e mais elaborado de todos os líderes) foram enxertados numa visão que sofria de uma contradição insanável – a cartilha era essencialmente a soviética (em grande parte traduzida a partir da versão, com certificado de origem, do PCP) mas as condições objectivas e subjectivas sempre foram mais as da revolução na China (em que Mao substituiu a preponderância camponesa pela da classe operária) e as da heterodoxia doce do castrismo (em que o know-how de guerrilha permitia quase todas as similitudes com a luta de libertação). E sabemos das colisões, de facto, que existiram (e eram inevitáveis) entre a concepção conservadora e mais estatista/imperial da URSS (tivesse ou não peso, a classe operária sempre na direcção) quanto à “pureza marxista-leninista” e as versões com sementes de heresia dos seus camaradas chineses e cubanos (uns pela transferência de direcção para os camponeses, outros para o primado da vontade e do exemplo como pólos atractivos sobretudo para os estudantes radicais e camponeses desesperados).

Esta questão é, no meu ponto de vista, necessária de ser entendida, sob risco de não se entenderem Angola, Moçambique e Guiné dos nossos dias. Porque tem a ver com as matrizes nascentes que condicionaram o porvir. Mas, mesmo assim, “pecados comuns” à parte (e não são poucos), as experiências “socialistas” em cada uma das antigas colónias seguiram elaborações teóricas e programáticas bem diferentes, sendo denominador comum o abrigo geoestratégico (com mais salsa cubana no caso angolano). E, em termos de consolidação de poder e da sua brutalização, cada caso se transformou num caso. Sobre isso, escrevi em Julho neste post de que aguardo contradita, complementos e correcções.

No entanto, julgo que a questão mais premente de ser explorada agora é pensar, para compreender, como é que o poder em Angola e em Moçambique foi transferido, dentro da mesma capulana partidária, da matriz marxista-leninista para a do alinhamento com o Ocidente e da conversão à “economia de mercado”. Sendo certo, mais uma vez, que cada um destes casos foi um caso, embora as resultantes se aproximem a olhos vistos, sob moderação, liderança e benção do Tio Sam (afinal o capitalismo é bem mais uniformizador que o foi o desgraçado e falhado marxismo-leninismo).

Fica o desafio em aberto. Queres pegar-lhe, caríssimo João Abel? E outros que se cheguem porque isto não é dueto combinado.















Publicado por João Tunes às 18:16
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