Dialecticamente falando, não há equinócio sem solstício, caríssimo amigo Manuel Correia. A ideia transmitida, referindo-te à Revolução Francesa, em que a consideras como sendo a Revolução Moderna, que consagrou um projecto de carácter civilizacional assente no tríptico Liberdade, Igualdade e Fraternidade, tem muito que se lhe diga. Esta reverência perante a convulsão que abalou o mundo monárquico absolutista e trouxe o jacobinismo e o radicalismo (dos “Montanheses” e, sobretudo, dos “Iguais” de Babeuf) como parte integrante do modo revolucionário de alterar as relações sociais e políticas no mundo, faz parte, reconheço essa autoridade, da tradição da historiografia pré-moderna consagrada, nomeadamente difundida através de uma datada mas fortíssima corrente de historiadores franceses encantados com a qualidade francocêntrica de enfeitar a França (ah o velho chauvinismo galês!) como alavanca pioneira do progresso revolucionário e do progresso no mundo (lembrando a arte homóloga com que, após a II Guerra Mundial, se disfarçou o “vichysmo” dominante numa gesta empolada da resistência francesa contra a ocupação nazi). E o facto de a Revolução ter dado no Terror e este ter desembocado em Napoleão e no Império (feitas as contas de saldo, da coroa da monarquia absolutista passou-se à coroa de louros de um Imperador, com um intervalo em que a burguesia movimentou as massas populares), nunca ficou com a merecida relevância historiográfica de balanço.
A mitificação de enaltecimento e desculpabilizção da Revolução Francesa, envolvida que foi na bruma da “etapa progressista”, deveu-se muito ao acrescento do martírio da “Comuna de Paris” mas sobretudo à noção redentora de que as suas falhas e recuos, encorpadas na Comuna, foram vingadas e aplanadas com o sucesso da Revolução de Outubro na Rússia. Aliás, a Revolução Francesa sempre foi apresentada oficialmente, tendo em conta os cânones da materialismo histórico, como uma “etapa intermédia e incompleta” de libertação da opressão, sofrendo embora da pecha de ter sido conduzida pela burguesia, tendo calhado à Revolução Bolchevique a “correcção histórica” de colocar o proletariado na liderança exclusiva e exclusivista da vanguarda revolucionária (e sabendo melhor que todos exercer um Terror eficaz, vermelho). Com um efeito subentendido não pequeno (embora escamoteado) – a inversão da ordem do tríptico “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”.
Mas, no fundo, o que de transmissível e duradouro a Revolução Francesa deu (inovando) ao mundo foi não uma mas três tradições de transformação sócio-política – a dos “jacobinos” que alimentaria a prática e a tradição republicana com preocupações evolucionistas (que marcou, nomeadamente, o PS de Mário Soares); a dos “montanheses” que enformou a social-democracia revolucionária (até à sua ultrapassagem degenerativa pela cisão comunista); a dos “iguais” que foram fixados como a origem utópica e legitimadora do marxismo consequente de praxis bolchevique. No seu conjunto, estes berços de herança cobraram, durante décadas, um terrível preço pago pelas massas empurradas mas sujeitas a vagas sucessivas de terror – transformar á pazada, valorizando a revolução face à livre escolha e à democracia (a grande pecha dos reformistas timoratos e oscilantes).
Talvez, no fundo, o tal inquérito que inquietou o Manuel Correia e lhe mereceu um post sofisticadamente irónico (e de que partilho integralmente as preocupações subjacentes) se deva, também, aos mal entendidos histórico-utópicos. E como não entender que sejam os franceses a pagar o preço maior dos seus exageros ego-chauvinistas na pintura da História? Digamos, como remoque irónico para com o "politicamente correcto", que é “justo”.
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