A extrema-esquerda já não é o que era. Embora continue com um pé dentro do Arco Parlamentar (para “influenciar” e “denunciar”) e outro na rua, no ressentimento ou no espectáculo fracturante, os actores vão mudando de papéis.
O PCP, livre do pensamento exigente, cifrado, austero e rigorista de Cunhal, que foi embalsamado como ícone, largou a ortodoxia dos cânones revolucionários marxistas-leninistas e regrediu para um populismo anarco-obreirista que faz lembrar o tempo da sua criação marxiana em 1921. Na sua actual deriva “jerónima”, a arte da política e da revolução foi simplificada ao extremo da mera afectividade histérica do protesto ressentido a par de uma política de alianças “internacionalista” aterradora e apocalíptica em que cabe todo e qualquer que puxe as barbas ao Tio Sam e aos judeus. Na prática, hoje, mudados os tempos, as vontades e os talentos, o PCP imita o que de pior ficou memória do esquerdismo efervescente que combateu outrora como “radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista”.
O Bloco de Esquerda cada vez é mais a expressão do predomínio definitivo da ala urbana, elitista e folclórica (mas, no fundo, profundamente jesuítica) do “PSR” sobre a componente absorvida da “UDP” à Enver Hoxa.
Olhando para o panorama conjunto, parece que a “componente obreiro-radical” (cada vez mais desajustada da realidade económica e laboral) aderente em tempos aos irredentismos trotsquista e maoísta se mudou de armas e bagagens para o reduto revisionista, dando-lhe colorido onde faltam as ideias e as alternativas. Provavelmente, a mudança foi facilitada pelo facto de a “base operária” (e sobretudo a “base sindical”) ter ficado entrincheirada na banda do PCP e nunca ter sido um meio de influência natural do PSR. A que acresce muita militância adormecida nos tempos da exigência ideológica e de princípios. Hoje, com o crescendo do desespero pelo definhamento das velhas organizações empresariais fabril e camponesa, com nítidas e numerosas estratificações de classes e sub-classes, o ressentimento face à mudança exprime-se num constante “Não” que é a máxima das simplificações e a quem o carisma muito peculiar e populista-simpático de Jerónimo de Sousa assenta que nem uma luva.
A “Marcha contra o Desemprego” promovida pelo Bloco foi um exemplo paradigmático e ridículo da tentativa desesperada de uma camada radical, urbana e elitista se tentar mover como peixe fora de água. Transpondo uma representação de espectáculo fracturante, sedimentado nas antigas práticas lúdicas das marchas pró-gay, pró-aborto e pró-minorias, para o mundo laboral, enquadrando um dos seus problemas mais graves e desesperantes (o desemprego), o resultado foi quase de confronto cultural provocatório com os pretensos “defendidos”. Soou a brincadeira com assuntos sérios de muita gente (demasiada gente) a braços com a sobrevivência e a desqualificação social. A cereja em cima do espectáculo deprimente, talvez mesmo ofensivo, da Marcha do Bloco foi a proposta final e revolucionária do alargamento do fim-de-semana para três dias com um horário semanal de trabalho de 36 horas.
Por este andar, com a extrema-esquerda que vamos tendo, como é que os construtores do “Centrão” não hão-de andar contentes e felizes?
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