Os episódios gerados pelo já célebre discurso académico-teológico do Papa, e muita tinta, gritos, fogueiras, tiros e bombas estará ainda para render, são exemplares do mundo a que chegámos.
Sendo certo que a Igreja Católica tem, histórica e culturalmente, muitos telhados de vidro quando se fala de intolerância, perseguições, apetência pelo expansionismo e pelo domínio absoluto, promiscuidade interesseira com mandos absolutos, evolução dos costumes, sexualidade e emancipação da mulher, isso não a pode inibir de, quando entender, convidar a reflectir sobre a intolerância e a razão, ou exprimir-se como entender sobre o que entender. O Papa fê-lo na Alemanha. Sujeitou-se (como sempre) à crítica e ao contraditório. Inclusive quanto à oportunidade e sagacidade da gestão das suas palavras. Nunca ao anátema, muito menos à violência desenfreada e revanchista como resposta. E, neste aspecto, merecia a solidariedade dos homens e mulheres livres que se querem livres.
A reacção islâmica ao discurso do Papa é não só uma medida da intolerância como boa parte do islamismo se vê a si próprio como intocável (pretendendo que o seu sentido de sagrado seja aceite como universal), como, por outro lado, um resultado concreto do “medo” que as sociedades democráticas demonstraram face ao fundamentalismo muçulmano. A experiência dos “cartoons dinamarqueses” já havia demonstrado isto mesmo – a larga difusão de um reflexo medroso de “não assustar” e “não irritar” o Islão para que eles se contenham e não desatem a fazer mais estragos que aqueles a que já se habituaram a fazer, a mor das vezes impunemente. Com muita complacência democrático-timorata, em que se difundiu uma forte corrente autoflageladora em que o “mal” estava mais entre nós que no seio da serpente que tem como fito dominar e expandir-se até a todos nos transformar em discípulos corânicos, o fundamentalismo, dominador da bomba e das ruas islamizadas, sente-se mais forte, mais inatacável, com maior capacidade ofensiva. Com maior à vontade para dar vazão ao seu histerismo integrista. O próprio Vaticano, na altura dos “cartoons”, fez coro no apelo à autocensura. Teve, agora, o efeito previsível do ricochete.
O Papa foi, efectivamente, infeliz. Não pelo discurso teológico-académico na Universidade alemã. Se ele for lido com atenção, além dos flashs jornalísticos, ver-se-á que se trata de uma peça oratória erudita, diga-se que sem grande brilhantismo cultural e histórico, mas bem intencionada e inócua quanto a uma eventual agressividade intolerante. E se no discurso havia carapuças a enfiar, embora o exemplo tenha sido uma fase medieval do confronto entre o Cristianismo e o Islão, elas eram várias e serviam a muitas cabeças, inclusive às muitas e pouco limpas mitras papais. O Papa foi agora infeliz no seu “retratar” de humildade assustada, feito agora perante os seus fiéis peregrinos, em que, mais uma vez, se cedeu à intolerância da susceptibilidade islâmica, dando-lhe foral de corrente espiritual (bem secular!) a tratar com a excepção da não crítica. Que menos não é que um vergar perante os seus dogmas, acentuando-lhe os entorses de, pelos nossos medos, se julgarem com direito ao domínio monoreligioso sobre o mundo, base primeira da fundamentação da ideologia do terrorismo islâmico.
De medo em medo, qualquer dia andamos a dar colo aos Saladinos de sabre desembainhado.
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