Quarta-feira, 2 de Agosto de 2006

O PESO ACORDADO DA MEMÓRIA

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A memória pesa. Pesando, resiste a adormecer no esquecimento. E dói se deitada sobre almofadas de tabu. Porque, se recalcada, não há morfina que iniba o efeito maldoso do pesadelo da memória. E, se obrigada a dormir à força, quantas são as vezes em que a memória nos acorda e espanta com o seu ressonar…

 

Por cá, andamos às voltas com os sítios da tortura e ignomínia pidesco-salazarista para ver se se arranja um sítio condizente para se deitar a memória, sem a esquecer, do meio século português em que a prisão e a tortura ocuparam o lugar da liberdade. Parece que não pode ser na antiga sede da “prestimosa” onde se davam os “safanões a tempo”, agora destinada a servir de tugúrio de luxo a ilustrar o Chiado. Para ali estarão destinadas camas finas e de bom sossego, não para se deitar, ou sequer sentar, a malfadada memória que tem o risco de perturbar a direita portuguesa de hoje, recordando-lhe, num qualquer propósito despropositado, que receberam uma herança de vergonha dos seus ascendentes trogloditas. A coisa estará encaminhada para que a memória da ditadura se sente e se exponha, pelo menos com algumas das suas partes, no Aljube em Lisboa e na sucursal da PIDE na Rua do Heroísmo, no Porto. Já é qualquer coisa entre tanta desmemoria conseguida.

 

Ao nosso lado, o governo Zapatero, finalmente e no 70º aniversário da mortandade iniciada com o golpe de Franco, aprovou uma lei que contempla alguma reparação de injustiças longas e fundas pela forma como se incensaram os vencedores e se aviltaram os vencidos. Agora, já se podem recolher as ossadas dos fuzilados despejados em valas comuns, vão ser retirados os vómitos toponímicos da exaltação franquista e que poluem praças, avenidas e ruas de Espanha, o “Vale dos Caídos” (em Gadarrama às portas de Madrid) vai ser “reconvertido” da sua parcialidade, passando de monumento católico-fascista de exaltação ao “Caudillo de Espanha pela graça de Deus” a memorial de respeito por todas as vítimas da guerra civil de Espanha e da ditadura de Franco. Nada mau, nada pouco. Claro que esta medida, corajosa mas aquém de tudo quanto seria justo, despertou sentimentos adversos. A extrema-esquerda queria mais. A direita e extrema-direita (que, em Espanha, se misturam num mesmo Partido) queria nada. Ou seja, queriam a continuação do silêncio. Porque as suas vítimas não estão insepultas e deram-se prebendas a eles ou seus descendentes, porque gostarão de passear e “tomar una copa” em “calles” evocando Franco, José António e seus émulos, finalmente porque sabem que a recuperação da memória lhes mostra os rabos de palha com que, hoje, participam no jogo democrático que, quando do poder absoluto, sempre negaram a outros. Enfim, entre os dois termos na desforra ou no prolongamento do “esquecimento”, Zapatero (filho de um fuzilado por Franco), mais uma vez, talvez sábia e sensatamente, escolheu traçar uma lei de risco a meio (mas honroso e corajoso).

 

Olhando para a manifestação da “opinião pública” portuguesa, tirando uns tantos que resistem aos malefícios da amnésia colectiva, ou assistimos aos silêncios da ignorância ou da conveniência, ou então encontramos ecos do inconformismo com o despertar da memória. Vasco Pulido Valente, cada vez mais competindo com o estatuto de inimputabilidade de “enfant terrible” já outorgado ao Jardim da Madeira, vocifera que transformar a memória dos tempos do salazarismo em Museu é parvoíce (tirando ele, poucos serão os não parvos). Mário Pinto, professor e colunista no “Público”, genuíno representante da eterna direita católica, silencia (diplomaticamente?) o que por cá se reclama e pré-anuncia, para zurzir nos “malefícios” de Zapatero em mexer na memória da guerra civil, reproduzindo integralmente a mentira de propaganda das hostes católico-franquistas – “foram os rojos, com os seus abusos, que provocaram a guerra em Espanha” (sua última crónica no “Público” da passada segunda-feira). Ou seja, setenta anos passados, nada aprendeu nem quis aprender e muito menos aposta no remorso, confissão e penitência, pela forma como a Igreja Católica apoiou e sustentou a mortandade espanhola e os crimes do franquismo. Talvez tenha hábito, sustentado por décadas, de rezar na missa diária celebrada no “Vale dos Caídos” pela vitória do franquismo e glória celestial dos seus combatentes e, agora, lhe custe a reconversão da Basílica ímpia. Talvez. Que aproveite, ele e outros mais, as missas celebradas por dominicanos a separar os "santos" dos "pecadores" e antes que as obras comecem.

Publicado por João Tunes às 16:13
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