Quarta-feira, 2 de Agosto de 2006

O PAPEL DO “MAU LADRÃO”

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Na sua exposição redentora (libertador de Cuba, desafiador dos Estados Unidos, apoiante dos povos oprimidos de todo o mundo), Fidel Castro sempre se fez acompanhar, na cruz da “Pátria ou Morte, Venceremos”, das representações repescadas do “bom ladrão” e do “mau ladrão”. Tal como Cristo que, segundo alguns, terá sido o primeiro revolucionário comunista na terra. O papel de primeiro acólito, o “bom ladrão”, o romântico idealista, foi representado com sucesso pela saga e depois mito do Che. O papel de segundo acólito, o “mau ladrão”, o da mão dura, ortodoxa e impiedosa, foi desde sempre entregue ao seu irmão mais novo Raul. E emoldurado entre o mito de Che e a mão de aço de Raul, Fidel tem reinado absolutamente há 47 (quarenta e sete!) anos.

 

Numa extensa e detalhada carta pública (transcrita, deu para encher toda a primeira página do “Granma”), Fidel fez a transferência (provisória) dos seus vastos poderes omnipotentes. A carta em si mesma não tem qualquer credibilidade. Ou a doença do ditador não é tão grave como proclamou ou um paciente com doença tão grave, a caminho da mesa de operações e com abundantes hemorragias internas, não tem capacidade para pensar e muito menos escrever uma tão longa e minuciosa carta, pelo que outros a terão escrito em seu nome. Daí que julgue com consistência a tese de Martín Iñiguez Ramos (professor de relações internacionais na Universidade Nacional Autónoma do México) em entrevista à Agencia mexicana NOTIMEX em que vislumbra uma mera encenação de antecipação da passagem dos poderes. O que não espantaria em Fidel, antes demonstraria que aos seus dotes de actor carismático, junta os de encenador prevenido e de talento manhoso. Quiçá, contando que a “provocação” (de que as manifestações de júbilo feitas em Miami são o primeiro resultado) faça saltar antes de tempo, os opositores internos, os saturados, os sedentos de "desforra" e os “inimigos americanos”, inviabilizando as condições para uma saída pacífica e democratizante. E o “contragolpe” (o da “defesa da revolução”) já está em marcha com a mobilização militar de todos os cubanos com menos de 45 anos e dos CDR’s (as milícias de bairro).

 

Embora oficialíssima há muitos anos, até pelo aval constante dado por Fidel a essa linha de sucessão, nunca foi consistente a hipótese de que a Fidel lhe sucedesse o “mau ladrão”. Nem o facto de a “carta” de agora o parecer confirmar e oficializar. Há quase unanimidade na percepção que Raul Castro não tem a mínima capacidade de suceder a Fidel e que a verificar-se essa hipótese ela só se justificaria por paranóia aguda e/ou … para precipitar o fim da ditadura cubana. Raul é um duro, um político gelado e impiedoso, incapaz de representar o folclore do idealismo romântico, utópico e populista latino-americano e de criar empatia, sem o mínimo de carisma, constando-se que gosta mais de rum que de arengas às massas. É o frio torcionário da sombra, o suporte militarizado e carcerário do poder exercido pelo mano carismático. Não tem estofo de primeira figura. Assim, a hipótese de Raul a suceder a Fidel, só entra na hipótese absurda de Fidel, traindo a Revolução, resolver entregar a “taluda” aos Estados Unidos e à máfia cubana de Miami, devolvendo-lhe o bordel, o casino e as praias que conquistara a Batista. Uma hipótese tão louca que se suportaria apenas num diagnóstico errado do mal grave de Fidel – será demência o que padece e não dos intestinos.   

 

 

De qualquer forma, Fidel, embora a contragosto, não é eterno. Já o tem dito pelo que se presume que aceite esta lei da vida. Resta saber se os seus companheiros de poder a reconhecem. E talvez seja essa a estratégia de Fidel – experimentar-se o mando breve e desastrado do “mau ladrão”, esgotando-se aí as catarses emocionais, testando-se as reacções internas e externas, para que, ainda podendo intervir, o sucessor de facto (Carlos Lage Dávila ou, mais consistentemente, Felipe Pérez Roque), salte para a ribalta como factor de apaziguamento e de remobilização. Como sempre, os estertores das ditaduras são trágicos e caixas de surpresas. Porque nestas, ao contrário das democracias, as passagens de testemunho soam muito mais a contos policiais que a romances banais. O problema, para além da estética e rodriguinhos do espectáculo, é que os cubanos mereciam, como todos os povos, transição democrática, liberdade e tranquilidade, sem perda de soberania. O que, com Fidel, foi uma possibilidade negada e sabotada. Sem Fidel, ou além de Fidel, é apenas uma esperança improvável ao fundo do túnel. Deixando para a história cubana a marca de que a sua maior tragédia se chama, se chamará, Fidel Castro.

Publicado por João Tunes às 13:16
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