Há clichés adquiridos e, por repetidos até á exaustão, se confundem como dados históricos adquiridos. Um desses, curiosamente utilizado por “um” e “outro” lado, assenta na ideia difundida de que, durante a guerra colonial, a URSS e os seus satélites do “socialismo real”, foram aliados e apoiantes indefectíveis de três dos movimentos guerrilheiros que combateram (e venceram) o exército colonial português (PAIGC, MPLA, FRELIMO). Para os do lado da saudade do Império, isto demonstra que, afinal, Portugal lutou em África não contra os povos africanos mas contra o comunismo e o domínio geoestratégico da URSS. Para os do campo do internacionalismo proletário, o mesmo cliché funciona como demonstração de que sempre foi uma expressão do internacionalismo desinteressado e idealista.
Só há volta a dar para desmontar o cliché e evidenciar as subtilezas, arestas e contradições da realidade da tal aliança, com a ajuda dos historiadores e pelo acesso difícil, a conta gotas, a arquivos fechados a sete chaves. Os de Cuba, os referentes á sua ajuda internacionalista em África, muito terão ainda de esperar pois o sol da democracia custa a nascer na Ilha. Os da falecida União Soviética lá vão debitando uma ou outra gota. Quanto aos do PCP, podemos esperar bem sentados que a demora promete ser longa.
Um artigo publicado por José Milhazes no último número da revista PÚBLICA (acessível aqui), contribui para desmontar um dos mitos metidos no cliché que apresentam Agostinho Neto como um instrumento ou um aliado sem mancha da “ofensiva soviética” em África. A documentação revelada comprova que as relações entre a URSS e a liderança de Agostinho Neto foram não só tumultuosas como chegaram a resvalar para o conflito aberto (só por um triz não terá sido mortífero). Integrando estes dados com as sombras percebidas de outros (a suposta preferência por Chipenda quando da cisão da “Revolta do Leste”; o apoio decisivo da Jugoslávia e da Argélia na instalação armada do MPLA em Luanda, apoio
O “caso Neto” não terá sido único entre os vários dirigentes dos movimentos de libertação. Existindo fortes indícios, em espera de cabal demonstração histórica, que parecido se terá passado com Amílcar, Mondlane e Samora. Ou seja, embora condicionados – para fazerem e continuarem a luta – a contarem com a ajuda armamentista e de combatentes da URSS e de Cuba, procuraram não só alargar as alianças e apoios para outras áreas de influência, como não abdicaram da possível independência dos interesses “nacionais” face à factura do funil do alinhamento dos apoios. E igualmente se vai demonstrando com quanto desagrado esta “indisciplina internacionalista” era vista no “sol que iluminava a terra”.
Particularmente no que respeita a Amílcar Cabral, o mais capaz entre todos os líderes africanos, estão para conhecer os contornos exactos de todos os dedos (além dos da PIDE e, eventualmente, de Sekou Touré) que puxaram o gatilho dos disparos que o assassinou. Sabendo-se que os conjurados tinham sido todos treinados e doutrinados na URSS e que antes, na invasão da Guiné-Conacry na “Operação Mar Verde”de 1971, em que um dos objectivos falhados era o assassinato de Amílcar e da sua direcção, Alpoim Calvão avançou com milhares de “kalashnikov” compradas pela PIDE à URSS por via do traficante de armas Zoio e não sendo crível que os soviéticos não soubessem do seu destino.
Enfim, o cliché continua. Mas a obra de desbaste e recomposição compete aos historiadores. Necessitando-se, para isso, que os arquivos se abram. O que não vai ser nem fácil e muito menos rápido. Para já, aproveitem-se as frestas que se vão abrindo.
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