
Muitas vezes, demasiadas, com o nosso encanto folclórico-afectivo pelo Brasil, sobretudo por causa da sua oralidade musicada, pelos brasileiros (e porque não dizer: sobretudo com as brasileiras!), mais pelo canto dos cantores épicos de Lula como imitação pífia e trotsquista-cristã do “Cavaleiro da Esperança”, esquece-se um fenómeno bem tangível para quem visita e conhece o Brasil – ser, e continuar a ser, um dos países mais racistas do mundo. Não daquele racismo de sopro e assobio, mas racismo do mais cruel e primário – o que mantém uma naco apreciável da sua população, os negros e as negras, afastados da decisão e sempre perto da discriminação, exceptuando quase só quando abanam a bunda ou dão genial pontapé na bola. É uma herança nossa, portuguesa, quando se investiu no Brasil, por causa da cana de açúcar (transferindo-se a produção antes centrada em São Tomé) e a Terra de Vera Cruz se transformou em grande destino do mercado de escravos. E há heranças, mesmo se bem disfarçadas, que perduram.
Leia-se Carlos Lopes (*):
“O Brasil ainda não superou a herança escravista. Mais de um século após a abolição da escravidão, os negros continuam a amargar os piores indicadores sociais do país. “Fica claro que existe uma estabilidade na condição dos negros, que se mantém ao longo da história”, observa Carlos Lopes, editor-chefe do Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil 2005 — Racismo, pobreza e violência, lançado pelo PNUD.”
(*) Carlos Lopes, editor-chefe do Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil 2005 — Racismo, pobreza e violência, lançado pelo PNUD. Lopes foi representante do PNUD e da ONU no Brasil.
De Violeta a 13 de Março de 2006
Excelente tema. Mas... e nós por cá como vamos?
Aconselho vivamente a leitura da tese de doutoramento de Rosa Cabecinha sobre Racismo e etnicidade em Portugal:
Uma análise psicossociológica da homogeneização das minorias
Uma das conclusões:
"... Se é inegável que se registou uma evolução no conteúdo dos estereótipos – os portugueses evitam caracterizar os angolanos com traços muito negativos e, em alguns casos, caracterizam-nos com traços mais positivos do que o seu próprio grupo - esta transformação opera-se a um nível superficial e não a um nível profundo. De facto, esta metamorfose em que a xenofobia parece ter dado lugar à xenofilia (o culto do exótico) esconde uma flagrante permanência: as dimensões mais valorizadas nas sociedades ocidentais (autonomia, individualidade, competência, responsabilidade) continuam a ser negadas ao grupo minoritário. A manutenção dos significados associados aos estereótipos torna-se particularmente evidente quando consideramos as dimensões de conteúdo exclusivas de cada grupo: a instrumentalidade e a dominância para o grupo dos portugueses e a expressividade e o exotismo para o grupo dos angolanos.
Outro aspecto a salientar diz respeito aos papéis que são atribuídos a cada um dos grupos: aos portugueses são associados traços que remetem para um papel activo na sociedade (trabalhadores, dinâmicos, empreendedores, etc.), enquanto que aos angolanos são associados traços que remetem para um papel decorativo ou lúdico (cheios de ritmo, musicais, sensuais, etc.). Este papel lúdico atribuído aos angolanos constitui também uma forma de permanência, se o virmos à luz das representações do ‘negro’ durante o período do colonialismo. Assim, o predomínio de traços juvenis e exóticos nos angolanos, denuncia a permanência da oposição entre a alegada ‘especificidade’ destes e a suposta ‘universalidade’ de portugueses."
"Globalmente, os resultados dos diversos estudos demonstram que o racismo sofreu uma metamorfose nas suas formas de expressão. O racismo actual manifesta-se essencialmente pela negação do reconhecimento da singularidade do outro, ou seja, pelo tratamento dos membros das minorias não como ‘indivíduos’ mas simplesmente como ‘representantes’ de uma categoria homogénea. Este processo manifesta-se num tratamento mais automático da informação relativamente a estes grupos, isto é, mais baseado nos estereótipos sociais. Os membros das minorias tornam-se ‘invisíveis’ enquanto pessoas, mas extremamente ‘visíveis’ enquanto grupo."
Felicidades para o autor do Blog de que sou leitora e visita regular (do blog, entenda-se).
Agradeço-lhe, Violeta, a sua boa achega que vou aproveitar para um post (depois de ter ido consultar a muito interessante tese de doutoramento que referiu e não conhecia). No entanto, permita que re-comente que os casos (papel dos negros no Brasil e relação com grupos etno-africanos em Portugal) não serão exactamente semelhantes - os negros brasileiros são brasileiros e o Brasil até é a pátria de Gylberto Freire, independente há tantos anos, é espantoso como as marcas da herança da sociedade esclavagista se mantêm quase intactas no domínio da segregação racista; no caso português, muitos dos africanos residentes são imigrantes e os traumas da colonização/descolonização perduram, incluindo muitos dos seus autores e figurantes. Por outro lado, se o contexto de influência sobre o Brasil é, para o bem e para o mal, predominantemente americana, em Portugal estamos num patamar de europeização primária. E julgo que o estudo de Rosa Cabecinha sendo deveras revelador sobre aspectos do racismo em Portugal, dificilmente se aplicaria, no género dos estereótipos, ao caso brasileiro. Para finalizar, adorei e diverti-me com a sua precisão de que era visita deste blogue mas não de minha casa. Sorte a sua, acrescento. Este blogue é o meu melhor, apesar do seu curto mérito. A minha casa é ainda mais banal e corriqueira, aturar-me pessoalmente não é recomendável a pessoas saudáveis e felizes. Esteja sempre à vontade nesta sua "casa". Este primeiro contacto foi já um prazer. Volte sempre.
De Violeta a 13 de Março de 2006
Caro João Tunes,
Não pretendi estabelecer semelhanças, apenas trazer à luz aspectos mais globais do fenómeno do racismo. E ,como sabemos, é, muitas vezes, sob a capa de um processo de convivência cordial que se distorce o conflito. E, por estar dissimulado e embrulhado em hipocrisia , é tão difícil de ser combatido.
Concordo consigo nas diferenças que aponta e nas raízes profundas deixadas pela sociedade esclavagista e colonialista de que, no caso do Brasil, não temos as mãos completamente limpas.
O Gilberto Freyre sempre pregou a indefinição racial, através da miscigenação, como uma solução para o racismo nacional não sendo alheio à tese da democracia racial no Brasil, aliás espelhada nos livros Casa Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso, em que salta um idílico cenário da democracia racial brasileira. E, hoje, no Brasil, apesar de ter a 2ª população negra do mundo (a 1ª é a Nigéria), cerca de 60% dos negros brasileiros estão na faixa de analfabetismo; apenas 18% dos negros tem possibilidade de ingressar na universidade; o negro é o primeiro a entrar no mercado de trabalho e o último a sair; muitas mulheres negras saem do país como artistas e são recebidas como prostitutas; a percentagem nas elites é um grão de areia etc etc etc.
Um último apontamento: vi a sua nova “casa” mas tive algum pudor em saltar, de imediato, para a varanda (apesar de aberta) e instalar-me. Levei algum tempo, mas já percebi que cada vez que fecha uma casa e costura outra noutro local, derruba paredes, abre janelas tornando a relação interior/exterior mais fluida, destrói e perfura a separação que cada casa comporta, deixa entrar cada vez mais luz sem nunca perder as nuances entre intimidade-exposição, transparência-opacidade, público-privado. Uma casa assim nunca pode ser banal e corriqueira e muito menos quem a construíu e habita.
Agora que já me sinto à vontade, voltarei.
De Samuel a 21 de Janeiro de 2008
Como posso ler a tese de doutoramento de Rosa Cabecinha?
Fiqui fascinado com cada palavra... Quero ler tudo!
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