Duas exclamações espantadas (esta e esta) foram atrás feitas a um espantoso post de Vital Moreira. Mas a sofisticação do argumentário utilizado pelo ilustre “opinion maker” merece mais como comentário. Muito mais. Porque, entre o que li e ouvi, Vital Moreira, com o seu habitual brilhantismo expositivo, demonstra ser o mais lídimo representante argumentativo e imaginativo entre os intelectuais da nossa praça em luta de oposição a Israel. Não desperdiçando o requinte no uso dos sofismas. Talvez disputando, pela parte da esquerda culta, limpa e moralista, o ceptro do talento aliado ao sofisma ao seu concorrente que corre pela banda direita inteligente, limpa e culta (falo, é claro, do incontornável José Pacheco Pereira).
Vital Moreira faz o seu contra-ataque (primeiro) pela via da purificação antimaniqueísta e (depois) pelo exercício imaginativo de encostar à parede os “democráticos pró-Israel” exigindo-lhe a coerência com o princípio da “superioridade moral das democracias”. Ou seja, autopurifica-se (arremessando o “rocket” do maniqueísmo) e exige pureza (exigindo superioridade moral aos defensores de Israel enquanto Estado democrático). Na embalagem, generaliza sobre outras querelas e globaliza a discussão sobre a dicotomia ditadura-democracia, no que demonstra que, afinal, as dicotomias são irresistíveis no seu poder de sedução. Até para ele, Vital Moreira.
Descendo à substância argumentativa do discurso de Vital Moreira, as democracias têm responsabilidades de conduta que as ditaduras, pelo nefando da sua natureza, são automaticamente inimputáveis. Este expediente, imaginativo e bem esgalhado, leva a uns tantos absurdos repugnantes na valorização diferenciada de vítimas de agressões, opressões e abusos. Até porque, transitados para a história portuguesa recente, se aplicada aos abusos e crimes do salazarismo-marcelismo, nomeadamente quanto aos crimes da PIDE e aos crimes coloniais, representariam uma absolvição pela falência de deveres morais exigíveis à ditadura fascista doméstica. Dito de outro modo, os crimes do fascismo português seriam graves se cometidos por um regime democrático mas assim como assim… o que aconteceu às vítimas do fascismo e do colonialismo português foi o que foi mas a contextualizar, relativizar, porque tiveram o azar da circunstância de terem nascido e vivido numa ditadura. Pelo conhecimento da vida e obra de Vital Moreira, só posso atribuir tamanha degenerescência de juízo histórico às armadilhas próprias do recurso ao sofisma.
Vital Moreira não é um desprevenido e muito menos um inocente, política e ideologicamente falando. Por isso, saberá que o seu jogo com as dicotomias, as alternativas e os juízos, ao serviço da causa do combate a Israel e aos Estados Unidos, é um jogo perigoso com enormes riscos de boomerang. Porque infindável e levando a muitos e contraditórios caminhos. Permitindo, por embalagem, forçar a sua aplicação a outros paradigmas (e paradoxos) fora, ou além, da dicotomia democracia-ditadura. Por exemplo, no campo de um conceito de democracia verdadeira, ampla, justa e social, de amplas liberdades, muitos furos acima dos limites estreitos da democracia burguesa e representativa, concepção que não espanta ver perfilhada pela maioria dos que militam na causa anti-Israel e anti-EUA, se aplicada á receita dos sofismas de Vital Moreira, dariam resultados de ricochete. Caso da evidência de que, então, as prisões políticas de Fidel Castro são muito mais inadmissíveis que a prisão americana e abjecta de Guantanamo (lugar onde, do outro lado da cerca, se situa uma das mais duras e violentas prisões políticas em Cuba). Como assim? Porque a burguesia, sobretudo os cimeiros no poder do estádio supremo do imperialismo, fazem do jogo democrático uma farsa de enganos, exploram, oprimem, sugam direitos e mais valias, almejam o lucro e desprezam direitos e liberdades, querem as riquezas, nomeadamente o petróleo, nas mãos das suas oligarquias e monopólios. Gente sem escrúpulos, é da natureza dos burgueses imperialistas terem construído e sustentado Guantanamo. Mas os revolucionários cubanos, senhor, porque dão tanta dor e fazem padecer assim? Eles, que libertaram a Ilha da pata americana, que deram e dão o corpo e a alma a espalharem a revolução libertadora no mundo, que transformaram Cuba numa sociedade justa e igualitária, sem explorados nem exploradores, espalhando escolas, habitação, pão e saúde, mobilizando o povo na senda do bem estar e da democracia avançada, porque prendem jornalistas, porque espancam divergentes, porque não permitem a emigração livre, porque fogem ao sufrágio livre e sujeito ao contraditório e à alternativa em que possam eleger, em voto secreto, Fidel e outros dirigentes (ou outros que não os mesmos de sempre)?
Pelo exercício, mal, muito mal, vai o stock argumentativo dos da causa anti-Israel e anti-EUA. Vital Moreira, do pedestal da sua estatura intelectual e política, demonstrou-o.
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