Sexta-feira, 1 de Outubro de 2004

REBATE

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Não, não sou nenhum dos “populares” que foi espreitar e chafurdar na tragédia da Joana. Recusei-me a contribuir para a “share” nas transmissões televisivas em directo dos episódios das buscas, investigações, prisões e tentativas de encontrar o cadáver. E saio café porta fora quando as conversas descambam na lambuzadela colectiva das conjunturas sobre episódios do crime. Assim, não pertenço ao número dos energúmenos bimbos zurzidos pelo impoluto Pacheco Pereira. Mas nem por isso me acho assim tão superior aos “populares” rascas que se põem de rabo para o ar espreitando por frechas nos prédios.

É que, a propósito da tragédia da pequena Joana, reflecti, mais uma vez, na forma como todos somos co-responsáveis no amontoar impune da violência contra as crianças, que mais não seja por omissão de intervenção.

Quantas vezes, actos de violência contra crianças (ou contra mulheres, ou…) se passam debaixo dos nossos olhos e logo os desviamos e calamos por falta de coragem de dizer basta, seja quem for o agressor, dando corpo à intervenção cívica que nos compete. Porque não queremos chatices, porque não nos queremos intrometer em “vidas alheias”, porque não nos dispomos a enfrentar feras possessas da sua posse, porque isto e mais aquilo. No fim, apenas porque não queremos suportar todos os custos da cidadania.

Esta nossa cobardia aumenta o sentido de impunidade daqueles que, por serem pais, maridos ou quer que seja que acham que lhes confere posse sobre alguém, entendem-se com direito ao exercício privado de mal tratar um ser humano, sobretudo quando o julga mais fraco e mais desprotegido.

Depois como abrir a boca de espanto, carpir indignações quando a espiral de violência chega à tragédia como foi o caso da Joana? Porque a tragédia da Joana não começou no seu fim. Antes, houve um acumular de “pequenos” episódios de humilhação, exploração e afastamento violento do seu mundo de criança. O problema é que, quem os viu e soube, achou que não era grave ou não se quis meter ou simplesmente achou bem porque “trabalhar ajuda a crescer” ou que um tabefe bem dado é da arte da pedagogia. O problema é quando se mata e mete polícia com novela policial e de mistério. Então clama-se por justiça justiceira, dando-se o corpo ao manifesto se for caso disso. Nessas alturas, até (para alguns) o regresso da Pide dava jeito.

Lembrei-me a propósito de um post que coloquei aqui, há perto de um ano, e que não resisto a transcrevê-lo (como reforço de auto-alerta):

Ao longo de uma vida, vão-se acumulando afectos, raivas, coisas que nos amarram, indiferenças, um ou outro acto de coragem e umas tantas cobardias. Cada um terá o seu saldo que não é comparável com os de outros. Até porque não há duas pessoas que vivam nas mesmas circunstâncias, tenham as mesmas oportunidades e os mesmos desafios. Assim, resta-nos prestar contas do saldo próprio ao confessor ou, solitariamente, à nossa consciência. Mas não adianta tentar esquecer. A nossa memória não dorme.

Tenho disso tudo que vou arrastando como espécie de carrego na memória. Que vou contrabalançando com a força de auto-estima que me ilude na ideia de, pesando os prós e os contras, até não sou mau tipo.

Doem as falhas de não ter estado em tudo em que se devia ter estado, do abraço a que nos baldámos no momento em que ele fazia falta, das faltas de comparência, do afecto a que nos distraímos a corresponder e dos silêncios onde a nossa voz se devia fazer ouvir a gritar revoltas. A festa na cabeça que alguém merecia de nós e que não se fez ou feita demasiado a correr. Ou o murro que ficou por dar. Mas quem é que pode ir a todas?

Tenho algumas cobardias indesculpáveis no meu cardápio. Algumas faço por fingir que as esqueço e resigno-me a que só saltem, às vezes, de dentro da memória e aos gritos. Ponho-lhes, rapidamente, a tampa por cima e espero que essas cobardias armazenadas se calem por uns tempos.

A cobardia que mais me vem atormentar, de quando em vez, na paz tentada da memória, foi uma que aconteceu vai para uns três anos atrás. Porque o sujeito me vai aparecendo, à frente dos olhos, uma vez por outra Um fulano de cara fechada, pêra esbranquiçada como se fosse um punhal de pelos pendurados no queixo, estava no meu café de bairro, lendo o seu jornal enquanto o filho pequeno (talvez cinco ou seis anos) brincava lá fora, matando o tempo de espera. O miúdo tinha uma cabeça muito grande e denotava sinais de atraso mental. Às tantas, o rapaz, talvez pela impaciência acumulada, fez uma inconveniência de pouca (nenhuma) monta - deu um encontrão no cartaz de anúncio dos gelados e deitou-o ao chão. O som ecoou metálico, em excesso sonoro relativamente ao significado do trambolhão da geringonça. O pai chamou o miúdo e mandou-o sentar-se na sua mesa que era mesmo ao lado da minha. Depois, pediu-lhe a mão e mansamente, com arte de torturador, foi-lhe apertando os dedos, aumentando a força da pressão em doses crescentes, repreendendo-o em voz sumida e cortante, martelando a mesma frase o pai está farto de te dizer para não fazeres disparates. O rapazito ia chorando, num choro em que o barulho se foi extinguindo, ao mesmo tempo que a dor ia aumentando, até se reduzir ao som inaudível das lágrimas a caírem e a molharem-lhe a cara. Primeiro, fiquei petrificado. Depois, levantei-me e zarpei. Fugi, foi o que foi. Ainda hoje não me perdoo não ter dado o murro que faltou nas ventas daquele pai torturador.





















Publicado por João Tunes às 12:35
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