
O mar pode ser um culto. E tão profundo que nos mereça curvar a cabeça e escondê-la, dando-lhe os cabelos para suporte da viagem da maresia. Talvez na vã esperança que o salitre nos tempere as fragilidades, resguardando-as na salmoura da auto-estima.
Sou um homem de rios, já o disse. Talvez por recato de timidez ou por susto contido para com a bravura do mar. Uma contradição, porque quanto a terras, bem que prefiro a montanha à planície, a que acresce o enfado para com a lezíria. E em que o Marão é a minha medida de toda a beleza das alturas. Sobrando que a vista que mais me encantou e encanta é, em todas as paisagens do meu correr o mundo, a planície desde que seja alentejana. Mais a savana africana, é claro. E as bolanhas da Guiné que me marcam a memória. Não dispensando, também na memória, a partilha de sonhos com o Índico, o mais romântico dos oceanos, quando refresquei os olhos com ele na vista, lá na Costa do Sol em Maputo. Mais o espectáculo único de espreitar o mar, em oração de não crente beato, no Cabo Espichel. Contradições, só contradições. Mas de que é que um homem seria feito se não tivesse os conflitos da contradição? De nada, digo, por não acreditar na grandeza do
mesmo, transformado em sacristia e túmulo antecipado dos normais correctos.
Pois, o mar. Eu percebo-te, companheira de imagem. Pelo prazer infinito que eu sinto, em luxúria fria, de ser despenteado no cimo do Cabo Espichel - um dos lugares mais bonitos e mais místicos do mundo. Ainda por cima, com o
valor acrescentado de me recordar a Foz e o Cabo do Mundo, teimosamente a juntarem norte e sul, baralhando a minha filiação de partido geográfico, tornando-me mais rico, isso sim.