Gosto do som do “tá-tá-tá-tá” de uma espingarda. Não fazendo mal a uma mosca, sendo um pacífico e um pacifista, tenho um gosto discutível, como todos os gostos, pelo “tá-tá-tá-tá”. Tenho não, TINHA (mas isso fica mais para o fim).
Certo é que as espingardas matam. E, em certas circunstâncias, até matam muito. Por vezes (as mais das vezes?) até matam quem não devem e estão em mãos que deviam estar quietas e não a disparar. Mas, já antes das espingardas, era assim. A guerra e a morte são mais velhas que as espingardas. As espingardas, culpa única, vieram foi ajudar a matar melhor e mais, ajudando a ganhar guerras justas ou injustas. E a melhor de todas as espingardas o que acrescenta, às outras não tão boas, às guerras e à morte, é matarem ainda mais e ainda melhor que as outras espingardas, permitindo mais guerras e mais mortes. Além de terem um “tá-tá-tá-tá” diferente, um som personalizado e que fica melhor no ouvido, uma marca sonora que a distingue. Até podendo ser, caso talvez de perfídia estética, uma coisa bonita de se ver e agradável no mexer. Em caso extremo, se for verdade que a guerra comporta muito de sexualidades reprimidas ao serviço de um grupo, uma espingarda nas mãos até terá o seu toque erótico, um género de sucedâneo prolongado de um pénis mortífero em erecção sempre pronta, uma volúpia na dialéctica entre a vida e a morte, coisa que, dizem os entendidos, o acto sexual também será.
Lamento decepcionar os decepcionáveis, mas não falo da nossa querida G3 (bem boa e grata espingarda!), a noiva das “comissões” fardadas e do PREC, a noiva com que tantos casaram á força, a companhia que não “nos” faltou nos calores e medos da guerra. Nem da célebre M-16 que não chegou aos americanos para ganharem no Vietname. Falo, antes, da espingarda automática (a chamada “espingarda de assalto”), infelizmente rival da nossa querida G3, a espingarda mais apreciada, usada e difundida no mundo – a famosíssima “Kalachnikov”, por vezes tratada carinhosamente pelo terno diminutivo de “Kalach”. Ou, respeitando a nomenclatura oficial, pela burocrática designação de “AK-47” [em que “AK” é a abreviatura de “Espingarda de Assalto Kalachnikov” e “47” refere o ano do início da sua produção na ex-URSS (ainda com o “Pai dos Povos” em forma quanto a saúde, paranóia e despotismo)]. O certo é que a “Kalach” é unanimemente, independentemente de a usar ou ser por ela alvejado, considerada a maravilha máxima, em tecnologia, em concepção, em eficácia e na beleza das linhas, entre as espingardas jamais dadas ao mundo desde que, ao mundo, a “Kalach” veio parar. Vejam que até Bin Laden, que nas escolhas não parece ser parvo, não dispensa sentar uma “Kalach” ao colo das saias quando aparece naqueles vídeos para assustar os americanos e o resto do mundo. E não haverá guerreiro ou guerrilheiro, contra-guerrilheiro também, que não gostasse de ter uma “Kalach” para combater. Ainda é assim e ininterruptamente desde que apareceu a sua primeira versão em 1947 por mor de decreto presidencial do “Zé dos Bigodes” e génio de um obscuro inventor (até à “perestroika”, a sua identidade era secreta por ser considerada “segredo de Estado”).
Nunca escondi a minha curiosidade, admiração e inveja, uma espécie de fascínio castrado por nunca lhe ter pegado, desde que me foi dado ouvi-la e vê-la “do outro lado”, o lado dos patriotas guineenses, nos idos tempos da guerra colonial. Para acalmar esta minha obsessão, tenho procurado, persistentemente, saber mais e mais sobre o nascimento, vida e obra da “Kalach”. Finalmente, um livro encheu-me as medidas, tanto que me esgotou o interesse por tudo quanto seja espingarda (o que já não era sem tempo, bolas, sempre foram 37 anos a pensar no raio de uma espingarda!). Agora sim, livre da obsessão no sortilégio da “Kalach” posso, finalmente, sentir-me livre e solto para me dedicar a grandes e boas causas – contra a exclusão social (fazendo corpo de combate com o Presidente Aníbal), a ajuda aos pobres (militando num Confissão com capela aberta), a defesa do ambiente, a luta contra o tabagismo, a homofobia, o racismo e a xenofobia, o fim da violência doméstica mais a pública, a defesa da "classe operária" (fazendo bis), a luta contra a “gripe das aves” e tudo quanto seja a boa conservação e melhoria da saúde pública. Causas assim ou parecidas. Boas causas. Para o MIC do Alegre, isso não, para esse peditório já dei o meu voto, com muito gosto mas chegou. Só boas causas. Com o terminar súbito e dorido da paixão para com uma espingarda. O que um livro consegue, deus nosso!
O livro a que me refiro é uma pequena autobiografia do inventor da “Kalachnikov” (*), recentemente editada em Portugal, o qual, para não destoar, se chamava Kalachnikov também. Isto é, a espingarda chamou-se “Kalachnikov” porque o seu autor assim se chamava. A vida do sujeito, ainda vivo e activo (contando 83/85 anos, um pouco mais que Mário Soares), teve uma trajectória interessantíssima, tirando a parte “balhelhas” como o homem pensa a política e o mundo de hoje, pois ajuda a entender o prodígio e a odisseia de um sargento autodidacta ter concebido aquilo que os sábios, cientistas, engenheiros, ali ou noutra parte do mundo, nunca chegaram – a maravilha da espingarda leve, fiável, segura, resistindo a todas as poluições, bonita, fácil de desmontar e de fabricar.
Como disse, vencido o amor enciumado e tortuoso (enquanto traição à nossa querida e germanizada G3) pela bela “kalach”, não quero mais saber de espingardas. Agora sim, serei o pacífico e o pacifista perfeitos. Tentarei, pelo menos. Adeus "tá-tá-tá-tá".
(*) “Kalachnikov, autobiografia do inventor da mais famosa metralhadora do mundo”, Mikhail Kalachnikov (com Elena Joly), Ed. Terramar.
Imagem: Mikhail Kalachnikov promovendo, para a exportação da indústria russa de defesa, a espingarda que concebeu e deu fama ao seu nome.
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