Sexta-feira, 18 de Fevereiro de 2005

CHISSANO ARMADO EM SPARTACUS?

escrav.jpg

Como previsto, a Universidade do Minho concedeu o doutoramento honoris causa ao ex-Presidente Chissano. Era previsível. Sabe-se que o núcleo duro daquela Universidade veio da antiga Universidade de Lourenço Marques. E uma parte dos antigos colonos ou acentuam as justificações míticas dos seus feitos ou tentam redimir-se pela penitência. Infelizmente, só uma outra parte consegue sair da refrega cultural e ideológica do passado, via sentimento de perda, por uma via sem complexos (ou seja, sem noção de contas a pagar ou a receber). O que, neste caso concreto, não diminui em nada, na apreciação académica, a admiração merecida para com esta Universidade dinâmica e que veio, além de muito mais, modernizar uma face do Minho.

Sabe-se que os ex-Presidentes têm uma atracção irresistível para, abandonado o poder, se redimirem dos compromissos acumulados nos seus mandatos através de liturgias exorcistas de valorização da crítica moral e radical. Afinal, um mero processo de compensações, por reequilíbrios purgantes, para a acumulada perda de contacto com a realidade que a imersão nos salões dos palácios do poder lhes retiraram. Como se o poder lhes tivesse tirado a luz do brilho das dores dos humanos e depois, enfim soltos, a liberdade dos comuns lhes cegassem os olhos, apetecendo-lhes resolver o que não resolveram e de uma penada. Lembrando Soares - o homem que intensificou os salários em atraso, meteu o socialismo na gaveta e foi muleta importante do cavaquismo -, não anda agora por aí armado em pró-bloquista, disputando rebeldias com o radicalismo de sacristia do Louçã - o homem das mil santidades para os mil pecados? E se Soares, o imenso Soares, assim se tornou, porque é que o manhoso do Chissano havia de degenerar à sina dos seus iguais em circunstâncias?

Pois o Presidente que, no seu mandato, tudo permitiu (ou incentivou?) para que o seu povo regredisse para o abandono, consolidando-se a transferência do processo de substituição da dominação colonial pela da máfia frelimista, agora o núcleo duro da acumulação capitalista selvagem e acelerada para construção instantânea de uma grande burguesia nacional, recebeu o doutoramento honroso da Universidade do Minho. E discursou como discursam os radicais esquerdistas africanos. E ouvindo-o, até parece que Chissano se dá hoje às liberdades de homilia próprias de um virtual bloquista à moçambicana.

E que desafio nos trouxe Chissano? O de Portugal e outras potências coloniais, mais os outros países que beneficiaram da escravatura (supondo-se que isso inclua todos da América do Norte, do Sul, mais a Central), apresentarem aos povos africanos “desculpas oficiais pelas atrocidades cometidas”.

Esta é uma reparação devida porque o comércio negreiro é uma das páginas mais vergonhosas do esbulho humano. Mas, se incompleta, torna-se injusta e cínica. Aos Países a que Chissano dirige a sua reclamação, haverá a juntar os necessários pedidos de desculpa de África aos africanos, em nome dos seus chefes tribais que levaram os escravos até aos postos de comércio negreiro. Porque não foi a Europa que ensinou aos africanos a arte da escravidão. Ela já era prática corrente nesse como noutros continentes. Porque escravizar é sempre mais fácil que libertar. O que o comércio negreiro, levado por portugueses e outros, trouxe de diferente aos chefes tribalistas e dominadores africanos foi um maior, global e valorizado mercado. E não valerá a pena lembrar (como foi o caso no Congo) as resistências furiosas e aguerridas que a abolição da escravatura pelos países europeus enfrentou perante os clans africanos que, assim, viam perder-se uma riquíssima receita.

Não direi que Chissano devia, no seu doutoramento, pedir desculpa aos moçambicanos pela forma como supervisionou os seus destinos nos seus anos de presidência. Porque acho que esse pedido de desculpas deve acontecer em solo moçambicano. E seria de mau gosto neo-colonial fazê-lo em Braga, perante aquela típica Academia. Mas não devia, pelo menos, armar-se em paladino do sofrimento africano com culpas repartidas. Ele, particularmente ele. Mas, sabe-se, nos ex-Presidentes há uma terrível pulsão para soltarem a língua. Então, se desculpamos Soares porque não perdoar a Chissano?











Publicado por João Tunes às 16:55
Link do post
Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.

j.tunes@sapo.pt


. 4 seguidores

Pesquisar neste blog

Maio 2015

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

Posts recentes

Nas cavernas da arqueolog...

O eterno Rossellini.

Um esforço desamparado

Pelas entranhas pútridas ...

O hino

Sartre & Beauvoir, Beauvo...

Os últimos anos de Sartre...

Muito talento em obra pós...

Feminismo e livros

Viajando pela agonia do c...

Arquivos

Maio 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Junho 2013

Março 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Junho 2012

Maio 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

Fevereiro 2004

Links:

blogs SAPO