Das experiências da guerra colonial, muitos ex-combatentes já começaram a abrir o livro. Não está tudo dito, a maioria e mais significativo do que haverá a dizer ainda está engolido, mas, neste aspecto, vai indo. Mas falta sobretudo o “outro lado”, esse vomitar dos silêncios doridos armazenados, em espera de catarse, pelas mães, irmãs, noivas, filhos e filhas dos que partiram rumo à guerra e cujo “combate” foi a permanente e longa espera da boa notícia da sobrevivência com uma permanente nuvem a pairar, grossa e escura, do temor pelo pior – o não regresso ou a devolução, não de um jovem inteiro, mas um pedaço de homem, mutilado no corpo ou na mente.
Mas, também no campo do testemunho e da emoção, as mulheres que sofreram na retaguarda as dores da guerra, estão a começar a falar, a escrever. É óptimo que assim aconteça e prossiga. Interessante, neste plano, é o que a Manuela Gonçalves (Nela) vai bordando a partir dos fios da sua memória, transmitindo a emoção de quem viveu a guerra colonial do lado da noiva do combatente com o azar de estar numa viatura, na viatura errada porque rebentada por uma mina. Proponho a leitura deste trecho:
“Foi em 1969, Maio, que ele foi para a Guiné. A bordo do Niassa (*) e integrado numa companhia que fora formada
Da Guiné, chegavam aerogramas que eu lia e tentava decifrar. Sim, naquela época, era preciso decifrar as palavras, como aquelas em que me dizia que tinha dado um passeio até ao Senegal. Eu sabia que tal significava que tinham feito uma incursão em terras senegalesas e fiquei receando que fosse feito prisioneiro. Pouco tempo antes, um grupo de oficiais tinha desertado e procurado asilo na Suécia.
Na faculdade, eu continuava o curso e a apoiar as lutas estudantis contra a guerra colonial. E escrevia cartas, cartas, aerogramas. Sempre muito cautelosa, sabia-se lá quem poderia ler as nossas palavras.
Recebia aerogramas aos pares.
Um dia não recebi. O silêncio continuou por duas longas semanas. Não fazia ideia do que poderia ter acontecido. Passaram diversos cenários pela minha mente, todos deduzidos pelas conversas que tínhamos tido, pelas utopias que partilhávamos, pelas palavras que não eram escritas. Teria sido apanhado no Senegal? Teria ido ele para o Senegal? Estaria morto? Ferido? Os jornais falavam da captura de um major cubano.
Que se passava?
Um aerograma de um amigo, Alferes Baptista, no Q.G. em Bissau, deu – me a notícia: uma mina tinha rebentado com o unimog, quando ele e o seu pelotão 60 seguiam numa patrulha. Ele estava no HMP em Bissau, em coma.
Era dia 13 de Novembro de 1969, 10:30 da manhã.
Restava-me esperar que o trouxessem para Lisboa e falar diariamente com um médico, amigo de uma tia, que prestava serviço no Hospital
Apesar de toda a dor e angústia sentidas, uma grande alegria: ele estava vivo. Os sonhos continuavam adiados, mas não jogados fora. Uma nova etapa nas nossas vidas havia começado!”
(*) – Por coincidência, o mesmo navio (na imagem) e na mesma viagem que me levou à guerra na Guiné.
Nota: Agradeço ao Luís Graça, ter descoberto e publicitado este tão sentido e tão bem escrito texto da Manuela Graça, ajudando ainda a descobrir o seu blogue.
OS MEUS BLOGS ANTERIORES:
Bota Acima (no blogger.br) (Setembro 2003 / Fevereiro 2004) - já web-apagado pelo servidor.
Bota Acima (Fevereiro 2004 a Novembro 2004)
Água Lisa 1 (Setembro 2004 a Fevereiro 2005)
Água Lisa 2 (Fevereiro 2005 a Junho 2005)
Água Lisa 3 (Junho 2005 a Dezembro 2005)
Água Lisa 4 (Outubro 2005 a Dezembro 2005)
Água Lisa 5 (Dezembro 2005 a Março 2006)