Se há um atavismo entranhado de dizer mal, lamuriando corrosivamente, acerca dos que fazem, até pelo potencial de fazerem bem e terem sucesso, também coexiste uma outra tendência doentia para a defesa obsessiva, mas posterior, dos caídos em desgraça. Que, muitas vezes, caíram por míngua de quem lhes segurasse o braço, ou lhes ensinasse a mudança de rumo, quando do caminho para a queda.
Correia de Campos foi um ministro que reformou mal. Tão mal que tornou irrelevantes eventuais bondades inscritas nas suas reformas. Neste sentido, em termos objectivos, poucos ministros da saúde terão periclitado tanto quanto ele a sobrevivência do Serviço Nacional de Saúde entendido como esteio de retribuição solidária aos cidadãos, quando em crise de fragilidade (no caso, por doença), do cumprimento dos deveres de apoio do Estado. Ao fragilizar em largas franjas da população o sentido de protecção pública no domínio das suas debilidades maiores, a prática de Correia de Campos levou ao enfraquecimento do laço político concreto que liga os cidadãos à democracia: a sensação de que o Estado serve, existindo para servir. E, ao contrário, o que o ex-ministro fez foi difundir uma sensação de distância, por abandono, da parte no Estado, atingindo-se a beira de um estado de escândalo público e que foi lautamente aproveitado por inevitáveis demagogias oposicionistas, até atingir o ponto de não retorno da respeitabilidade reformadora, situação esta que, in extremis, Sócrates pretendeu evitar.
Curiosamente, vozes não ouvidas em defesa de Correia de Campos e das suas reformas, quando delas precisava para se sustentar no poder, ouvem-se agora. E em clamor, numa espécie de hino a defuntos (o ministro e as reformas). Como se a queda de Correia de Campos tivesse arrastado para a valeta não só o sentido reformador como o próprio SNS.O que para Sócrates é um péssimo sinal, enquanto demonstração do poder de adição autofágica de parte importante dos que o apoiam (ou apoiaram), porque não só tacitamente reprovam o acto político da substituição do ministro como constituem um vazio de apoio a Ana Jorge para corrigir o que, desastradamente, se atamancou. Sem importar que, ao dar-se o SNS como moribundo, numa idolatria fulanizadora da capacidade de o reformar, se esteja a prestar o maior de todos os serviços antecipadores aos que esperam a hora de lhe fazerem o funeral.
No fundo, o comportamento dos públicos que são clientes políticos (interessados ou desinteressados) do PS e do governo, neste caso de substituição de Correia de Campos, são uma medida do resultado da desertificação de ideias e de debate que o PS e o governo de Sócrates consolidaram na paisagem política e partidária. Enquanto sustentação de exercício de poder, quis-se uma base de apoio sem massa crítica que incomodasse o rumo e distraisse o leme, género “maioria silenciosa”, concentrando o activismo na inspiração e na energia inesgotável do timoneiro, gerando-se uma cultura situacionista. O que só funciona quando o comandante e a marinhagem estão em maré de entusiasmo e com velas manobráveis a bons ventos. Depois, perversamente, quando um movimento brusco de leme tenta endireitar a rota, os passageiros de mar chão, os situacionistas, são os primeiros a empunharem o balde de cal e abrirem a cova para o enterro anunciado das reformas, dando corpo a uma nova oposição, a do desencanto, que é a mais corrosiva. Sócrates que se cuide agora dos situacionistas irritados, os que se esqueceram de aconselhar bem Correia de Campo (evidenciando-lhe as asneiras, principal dever de amigos e apoiantes) e que agora falham no apoio que Ana Jorge bem necessita para endireitar o barco.
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