Nem uma eminência académica resiste aos apelos do consumismo editorial. Com a boa desculpa, quase sempre confirmada, que não descura o conteúdo do publicado em seu nome, não permitindo seu mau uso. Ela dá o verbo em resumo de sapiência, a editora faz o resto, o consumidor paga, para ler ou como prenda, negócio feito. Tudo bem, tudo perfeito. Antes assim que acartar as resmas dos telegénicos com descargas literárias compulsivas.
É deveras curiosa a visitação a Lisboa feita por Fernando Rosas na sua foto-geografia revolucionária comentada (*). Com uma descrição completa das convulsões que, mesmo adormecidas, fizeram a identidade da cidade. Permitindo comparar os locais de hoje com o que foram antes quando furados por balas, entulhados com barricadas ou pisados por canhões e pelo povo marcial com armas emprestadas por marinheiros. No fundo, a Lisboa que é reverso da pacatez neo-burguesa que, para a maioria, é a imagem retida da capital. Mas que não seria o que é se palco compulsivo de revoluções não tivesse sido. E admirável o apontar das linhas de conservação dos confrontos entre classes armadas como constância no ritual revolucionário – os governos acantonados no mesmo quartel de refúgio, o povo a ir aos mesmos sítios buscando armas, dando apoios ou sabotando acções, com tudo a decidir-se no conflito maior entre a Rotunda e o Tejo. O grande senão da obra tem a ver com o conceito estreito que foi vazado de revolução, reduzindo-a à condição necessária de haver fogachada e estoiros de granadas, com castrenses a desfilar e mortos e feridos para contar. Fosse o conceito mais amplo, como julgo que devia ser, e o povo a comemorar a vitória dos “aliados” em 1945, Humberto Delgado a incendiar Lisboa em 1958 e as calçadas da baixa pombalina a saltarem no 1º de Maio de 1962 fariam boas companhias aos fraticídios republicanos, caminhadas revolucionárias e reaccionárias, mais os desesperos dos reviralhos, todos tão bem tratados e retratados.
Concebida como “prenda de Natal” para a malta de esquerda, a da nostalgia revolucionária, o resultado é satisfatoriamente feliz. Cara mas recomendável.
(*) – “Lisboa Revolucionária, roteiro dos confrontos armados de século XX”, Fernando Rosas, Edições Tinta da China.
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