Num post anterior, referimos o aparente paradoxo do não assumir por Salazar da continuidade efectiva entre a base social, política e ideológica (expressa, sobretudo, nas elites a mastigarem vontade de revanche desde a derrota do miguelismo) entre o sidonismo e o salazarismo, pesem embora uma ou outra agregação circunstancial (em termos de alianças espúrias repetidas, destaca-se o anarco-sindicalismo que apoiou, por ódio à repressão republicana anti-operária, as tomadas de poder por Sidónio e por Gomes da Costa, para rapidamente, num caso e noutro, levarem com o chanfalho repressivo como “paga” às ajudas sindicalistas aos revolucionários reaccionários; quanto a “aliança nova” no apoio ao salazarismo nascente tivemos o fascistóide nacional-sindicalismo, com tinta fresca da cópia do fascismo de Mussolini, o qual, não existindo ainda no tempo de Sidónio, foi, tal como aconteceu ao anarco-sindicalismo, rapidamente desfeito e perseguido no plasmar ideológico do Estado Novo). Lógico seria que a continuidade política e ideológica, com idênticas bases de apoio, as do portuguesismo reaccionário, entre sidonismo e salazarismo, em que este último beneficiou, no mínimo, do efeito erosivo sobre os alicerces do republicanismo demo-liberal, que Salazar assumisse a dívida para com o seu “precursor”. Mas, por exemplo segundo o historiador João Medina (*), tal nunca aconteceu:
“Quem leia os discursos e entrevistas de Salazar ao longo de tantos anos de poder pessoal incontestado, notará decerto uma curiosa e, em parte, inexplicável omissão nesse corpus doutrinário: a ausência quase completa de qualquer referência, mesmo puramente alusiva, a Sidónio e ao Dezembrismo, como se aquele chefe e esta experiência, pelo seu cariz retintamente republicano ou intuito manifesto de ser uma emenda da República feita por republicanos que vinham do 5 de Outubro de 1910, lhe desagradassem a tal ponto que as suprimia pela amnésia quase que freudianamente ressentida. Ainda que a brevidade do regime sidonista pudesse de algum modo explicar esta lacuna da memória do ditador Salazar, a verdade é que a inclusão de algumas figuras do regime dezembrista no seu elenco governativo ou dirigente e ainda o modelo ditatorialista nele incipientemente contido deveriam forçá-lo a essa homenagem como estadista que acabara por beneficiar dos dramas que tinham fragilizado e fracturado de modo insanável e precursor o regime republicano, a ponto de, oito anos volvidos sobre o assassinato de Sidónio, o professor coimbrão de Economia Política iniciar os seus primeiros passos na governação do país como ministro das Finanças.”
“Cremos que esta amnésia salazarista tem a ver com uma instintiva repugnância, por parte daquele que assim se esquecia de um passado tão recente, em inscrever-se numa linha republicana, quer doutrinal, quer em termos históricos, preferindo, nessa medida, buscar a bissectriz ideológica e jurídica de umas quantas tendências doutrinárias ou mesmo práticas passadas que o Estado Novo procuraria fundir numa frente unida: nacionalismo antiliberal, corporativo e católico mais perto do Franquismo (o de João Franco, obviamente) do que de qualquer outra ala do republicanismo, para ele pecaminosamente indissociável dos modelos de 89, do vintismo ou do jacobinismo. O pouco entusiasmo dos poderes públicos, durante os anos da ditadura salazarista, em prestar homenagem ao chefe baleado à entrada da estação do Rossio em 1918, comprovam, também de forma negativa, esta ausência de sidonofilia por parte de Salazar: exceptuando o nome de uma avenida junto ao Parque Eduardo VII, em Lisboa, pouco ou nada se fez para recordar oficialmente o “precursor” – termo que também raramente foi usado pela retórica do Salazarismo, pois nunca se chegou a erguer a projectada estátua ao major nascido em Caminha. A ritualização de homenagens de outras figuras públicas contém ainda outras lacunas de que seria útil indagar a origem – entre elas João Franco, que Salazar confessadamente admirava e com o qual se chegou a cartear -, o facto é que o Estado Novo, mesmo na sua tão forte vertente militar, dispensou-se de incluir Sidónio como emblema de instituições como a Mocidade Portuguesa ou a Legião Portuguesa, preferindo ir buscar vultos históricos mais canónicos, mais antigos, como Nuno Álvares Pereira – até porque não havia nestes o risco de terem sido maçons…”
“Na ditadura do Estado Novo, a presença deste ou daquele maioral ou condestável sidonista no elenco do regime não prova que Salazar tivesse sido o tal chefe prognosticado por Pessoa na sua ode fúnebre sebastianista, o tal avatar da figura sebástica de Sidónio. Nem o próprio Salazar se sentiu alguma vez – ou alguma vez o escreveu ou disse – como continuador do faíscante major-ditador que fora iniciado na loja maçónica «Estrela d’Alva», em Coimbra, em 1911 – já o futuro ditador «democrata cristão» por ali andava, agarrado às sebentas. Três anos depois de ter pronunciado, na sala grande dos actos da Universidade de Coimbra, a sua corajosa Oração de Sapiência sobre a nova pedagogia (16-X-1908), seis meses após o assassinato de D. Carlos e seu filho D. Luís Filipe.”
“Nem a natureza profunda da longa ditadura iniciada em 1926 mostraria que a República Nova tivesse sido, de algum modo evidente e indiscutível, o esboço mais parecido com o do Salazarismo. Não se trata, obviamente, de distinguir os dois homens singulares em causa, o major e matemático especialista em cálculo de probabilidades, o lente e fradalhão devorado pela libido dominandi, com os seus incompatíveis caracteres e idiossincrasias pessoais – as qualidades de brio, generosidade, coragem e inteligência calorosa do primeiro, em contraste tão flagrante com a misantropia fria, taciturna e desconfiada, a falta de caridade humana ou intelectual pelo próximo, a misoginia do ex-seminarista e a sua mesquinhez de carácter e de acção: para além destas diferenças colossais de temperamento, perfil psicológico e carácter há, sobretudo, dois modelos dos regimes que ambos protagonizaram, dois estilos e dois propósitos que tornam esses dois sistemas político-sociais e institucionais – a efemeríssima e ofegante República Nova e o tão longevo Estado Novo – como regimes que se aparentam mais pela enganadora razão de resultarem afinal do mesmo descalabro e falência do modelo demoliberal português, iniciado em 1820, recomeçado em 1834, emendado em 1851, degradado no final do século XIX com cesaristas régios e “endireitas” civis e militares, definitivamente ferido de morte pelo dementado consulado franquista, por fim reposto em modelos aparentemente democráticos, mais radicalizados – já não se tratava dum sistema de “liberdade outorgada” ou de Carta mandada por um monarca autoritário e absentista a um povo, ma um projecto colectivo, explodindo em tempestuoso Dies Irae, saído duma revolução “popular” -, retomando com a revolução de 1910, aquele que um fino observador como João Chagas, poucos dias depois do estrondo e tremor telúrico que dera com a monarquia no chão, achava, ao fim e ao cabo, dado a ausência de lances sangrentos ou sevícias vingativas, parecer-se mais com um “idílio” do que um bíblico dia de cólera, aquele em que o mundo se desfaz em cinzas…”
Para quem, como eu, começou a “aprender” História de Portugal nos tempos do ensino salazarista, a memória reterá o quão apagadas, praticamente inexistentes, eram as referências a Sidónio e como a mitologia historiográfica dos heróis e santos cultivados pelo Estado Novo navegava noutros campos de batalha, altares e sacristias. O que, não sendo prova histórica cabal do nojo de Salazar pelo republicanismo e pelo “pecado maçónico” que conspurcavam Sidónio aos seus olhos de jesuíta inquisitorial, confirma a tese de João Medina.
(*) – A transcrição seguinte é do livro “O «Presidente-Rei» Sidónio Pais, João Medina, Livros Horizonte (pgs 36-39).
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