É difícil entender o salazarismo sem se conhecer o sidonismo (curto período ditatorial em 1917-18). Não por similitudes entre ambos os ditadores que foram muito poucas (Salazar sempre silenciou qualquer legado, sequer simpatia, de Sidónio Pais). Também não pelas épocas históricas e ideológicas conexas com os fascismos e suas variantes autoritárias (o sidonismo foi um percursor do pré-fascismo europeu, o salazarismo foi um fascismo já enformado por Mussolini a que vestiu a sotaina). E é insondável o significado simbólico de ambos os ditadores terem descido da Cátedra coimbrã para cadeiras absolutas do poder em Lisboa. Mas o essencial do velho e retrógrado Portugal, inconformado com a República e em pânico com a Revolução Russa de 1917, se visitou o poder com Sidónio, habitou-o com Salazar. Em ambos os casos, na base de viscerais ódios aos partidos, à democracia, às liberdades, ao povo e ao espírito liberal, com um complexo trauliteiro recalcado desde a derrota miguelista e farto de, desde então, ver a vida a andar para trás. As “aparições” de Fátima (no mesmo ano em que Sidónio Pais assaltou o poder) foram um sinal do espaço que na sociedade civil, também farta do caciquismo republicano e da cadeia de desgovernações, havia para, congregando à volta da desforra clerical, proceder à revanche sobre a República e, entregando o poder a um Messias autoritário, Portugal fazer andar o relógio da história para trás, rumo ao miguelismo. Sidónio cavalgou a chance reaccionária, espalhou carisma, terror e populismo caritativo, ainda se fez eleger, e se foi breve no consulado foi porque a pistolada de um louco irascível substituiu (no caso, contrariou) a vontade popular. Salazar, ao contrário, deixou os militares tomarem o poder, espadeirando por ele, até que estes, desatinados com os negócios de governação, lhe entregaram, de bandeja, todo o poder, com o simples troco mísero de eternas prebendas para os castrenses cuja dignidade se transmutou em entender-lhe a passadeira, cedendo a forma política aos clérigos papistas. Assim, o que sidonismo e salazarismo arrastaram em comum, em contraponto às dissemelhanças vivas entre Sidónio e Salazar, foi o portuguesismo velho, beato, potencialmente monárquico, azedo, individualista, invejoso e relapso ao progresso e à modernidade, que sustentaram os poderes de Sidónio e de Salazar, definharam com Marcello e mantêm pólos eruptivos, mas marcantes, neste Portugal democrático e europeu.
João Medina, ilustre académico e polemista, tem sido um dos mais aturados estudiosos do período do sidonismo. Neste sentido, a sua investigação e estudo tem facilitado a percepção clara da ponte histórica entre sidonismo e salazarismo, o que representa mérito de monta que todos temos a agradecer-lhe. Mas é uma pena que o seu último livrinho sobre Sidónio Pais (*), cujo sumo se podia espremer em três ou quatro páginas, se tenha (nos tenha) encharcado de repetições e deleites gongóricos de vernáculo emproado para veste de arrogância de eminência académica, diluindo a substância em clareza e identificação histórica. Não estraga a síntese, nem as pistas e os sinais, mas dispensava-se, com ganho, o desperdício em papel que só servirá, se fôr o caso, para inchar pose narcísica de historiador encadernado.
(*) – “O «Presidente-Rei» Sidónio Pais”, João Medina, Livros Horizonte
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