Julgo tratar-se da publicação do livro histórico mais oportuno dos últimos tempos, a recente edição da obra de Frederick Taylor sobre o Muro de Berlim (*). Pelo tema, uma das barbaridades europeias mais medonhas da segunda metade do século XX. Mas, sobretudo, pela oportunidade de se conhecer melhor um gigante europeu em contínuo re-crescimento (a Alemanha). E quando a Alemanha cresce, a Europa tem o tique automático dual de se espantar e temê-la. Também sobre a forma como, nos tempos e momentos quentes, os mais quentes, da guerra fria, os aliados ocidentais da Alemanha e de Berlim, lidaram com elas, as Alemanhas (a capitalista e a comunista) e jogaram ao rato e ao gato com o colosso imperial soviético e o aventureirismo compulsivo de Krutchov (muitas vezes empurrado e armadilhado pelo fanático Ulbricht), ambos carregados de mísseis nucleares nas algibeiras.
De um lado, o bluff RDA, talvez a obra-prima do grotesco mais sofisticado conseguido em sociedades comunistas e no fabrico de Estados artificiais. Do outro, uma Alemanha que, perante a ameaça soviética, optou por se deixar reerguer sem se desnazificar. Com o abcesso de Berlim Ocidental metido dentro da RDA. E, depois, o monstro do Muro para evitar que um país ficasse vazio fugindo para dentro de uma meia cidade "inimiga". Até que a queda de podre de um Muro paranóico (coincidindo com a falência da RDA enquanto país e sociedade), passada a festa, recuperada a unidade de Berlim (mais a urbana que a humana), a Alemanha volte a incomodar pelo tamanho e pelo poder. E se Berlim e a Alemanha hoje não são tão ameaçadoras como parecem, ou vice-versa, isso deve-se fundamentalmente ao peso moderador das energias que os alemães ainda perdem em nostalgias (pelo aninhamento nas velhas divisões) e pelo incontestado e merecido prestígio da chanceler Merkel, ela mesma originária do Leste, vestindo um paradigma político do pragmatismo moderno e descomplexado.
Conhecer as formas valentes mas sobretudo sacanas, onde engenho, orgulho, cobardia e tibieza nunca faltaram, como milhões de vencidos da 2ª Guerra Mundial, apoiados por pólos neo-antagónicos de vencedores antigos aliados, lidaram com a realidade do maior castigo infligido à Alemanha por ter feito a guerra e a ter perdido, é um mostruário completíssimo sobre a plasticidade das sociedades perante os maiores desafios e ameaças. Demonstrando, como ensinamento a todos os povos, como se pode ser lesto a abrir e lamber feridas. E que feridas, as feridas alemãs. As espalhadas por eles e as outras, as que, de quando em vez, em fúria de violência doméstica, plantam uns nos outros. Incluindo o cúmulo de um Muro a dividir a sua principal cidade. E nada melhor para se fazer esta aprendizagem política (ou cívica?) que através da obra, este livro de Frederick Taylor, onde a apologética da visão propagandística cede perante o rigor, os factos e a teia do entendimento, a que acresce um poderoso fio literário, sem salamaleques cúmplices perante heróis e vilões. Que, quanto a estes, nenhum sistema tem fábrica de exclusivos de um de tais grupos.
(*) – “O Muro de Berlim”, Frederick Taylor, Edições Tinta da China.
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