Já aqui exprimi opinião contrária ao proibicionismo das manifestações do saudosismo salazarista. Quem governou (pessimamente, opinião minha) o país durante um período tão prolongado e que o marcou de formas que ainda hoje são sobrevivas (mais do que as reconhecidas), não deve ser silenciado por acto de saneamento da memória. Calar Salazar, pressionar os teimosos no seu culto com a retirada da possibilidade de exercerem os seus rituais de saudade, só avoluma o mito Salazar, dando-lhe a dimensão do fruto político proibido e avolumando-o como espécie de autoclismo para escape da desilusão democrática. Proibir Salazar é, apenas (e tanto!), uma forma eficaz para que se fantasie a sua governação e o preço que Portugal e que o povo português pagou por ela. E, entrando-se na fantasia, a invenção perde as baias dos limites, seja para o verniz ou para o rancor. E se os actuais paladinos do proibicionismo de Salazar, histéricos activistas da versão revivalista do antifascismo serôdio, são, eles mesmos, comprovados cultivadores recalcados de outros ditadores e outras ditaduras (tentando trocar as notas gordas de crimes e genocídios por cêntimos de "erros e desvios") e explícitos defensores das ditaduras que ainda sobrevivem no século XXI, com tal militância proibicionista o mito Salazar ganha e agradece tão estúpida cruzada.
A desmontagem do mito Salazar, o único combate que hoje faz sentido contra Salazar, consegue-se dando Salazar a conhecer, mostrando Salazar, revelando Salazar, expondo o grotesco arcaico do pensamento de Salazar, evidenciando o que o lastro de atraso do País deve, ainda hoje, a Salazar. Neste sentido, a recente reedição das famosas entrevistas de António Ferro (1) com Salazar, talvez o documento editado (2) que melhor revelou o pensamento de Salazar e o seu proto-fascismo arcaico e endógeno. No caso, a obra ganha dimensão crítica com a companhia de um notável estudo-síntese de Fernando Rosas, onde este historiador, com expedita cirurgia de análise, demonstra não só a fraude do culto como as linhas mestras do pensamento do ditador que tentou, e conseguiu, desatrelar Portugal do comboio da modernidade e do progresso. Prova provada que a melhor forma de desfazer o mito de Salazar é revelar Salazar. E que escondê-lo, proibi-lo, clandestinizá-lo, apagá-lo, deve ser mister exclusivo dos que querem ir para o outro mundo agarrados à sua alma política. Ou dos que o odiaram apenas por amor a Estaline.
(1) – António Ferro, jornalista adepto do fascismo, após as entrevistas com Salazar publicadas no “Diário de Notícias”, depois coligidas em livro, viria a ser o coordenador da “política do espírito” do salazarismo, assumindo o lugar de Secretário da Propaganda Nacional. As “entrevistas” foram literariamente encenadas, depois revistas palavra a palavra pelo ditador, e pretenderam funcionar como revelação do pensamento de Salazar sobre as mais variadas questões da situação portuguesa.
(2) “Entrevistas a Salazar”, António Ferro, Editora Parceria A. M. Pereira.
OS MEUS BLOGS ANTERIORES:
Bota Acima (no blogger.br) (Setembro 2003 / Fevereiro 2004) - já web-apagado pelo servidor.
Bota Acima (Fevereiro 2004 a Novembro 2004)
Água Lisa 1 (Setembro 2004 a Fevereiro 2005)
Água Lisa 2 (Fevereiro 2005 a Junho 2005)
Água Lisa 3 (Junho 2005 a Dezembro 2005)
Água Lisa 4 (Outubro 2005 a Dezembro 2005)
Água Lisa 5 (Dezembro 2005 a Março 2006)