Uma enorme decepção constituiu a leitura do livro de memórias de Jacinto Veloso (1), um dos mais poderosos dirigentes da FRELIMO no processo de consolidação da independência de Moçambique. Julgo até que a decepção, para quem esperava uma reflexão crítica e política sobre o processo de afirmação moçambicano, é uma “decepção construída” por só poder ser um assumido propósito do autor. Digo isto porque não imagino que seja possível que quem deteve tanto poder durante tanto tempo na construção e consolidação de um Estado, tendo estado dentro do círculo da máxima confiança do seu líder, mantendo as suas capacidades intelectuais bem afinadas, se reduza a um nível de reflexão política tão superficial, quase ao nível do estagiário de jornalismo generalista. Razões haverá, pois, para isso. Talvez do nível da higiene política para ficar bem no retrato para a história, refugiando-se na factologia asséptica, tentando tipificar os males moçambicanos em meia dúzia de bodes expiatórios (quase todos exteriores, pois claro, sobretudo os soviéticos e os seus paus mandados). Mas, em termos de análise política e social, o resultado é um zero muito gordo.
E a decepção foi ampliada porque da personagem, figura bem peculiar (2), era de esperar obra sumarenta, bem mais que um desfiar de caroços de episódios descarnados que, em vez de iluminar o processo moçambicano (que fosse simultaneamente útil para os moçambicanos e para os outros interessados na história de Moçambique), acaba por funcionar como uma espécie de pedra de sepultura na compreensão da história recente de Moçambique. O resultado é um “livro formal de estadista”, quase curricular porque demasiado composto, satisfeito e contido. Que o essencial ficou por contar, só o podendo ter sido por íntima ou combinada deliberação, deduz-se facilmente pelo papel que Jacinto Veloso desempenhou no Estado moçambicano. Ficando a pergunta maior: como é possível que aquele que foi, durante largos anos e no período mais tumultuoso da pós-independência, o responsável todo poderoso do aparelho de segurança, o chefe da “inteligência moçambicana”, retenha apenas como memória transmissível uma imensidão de viagens, encontros, negociações e sempre bons projectos e ainda melhores ideias? É inocência demasiada, caro senhor general. Tanta que não dá para esconder que, por opção, até parece que quis apagar todas as misérias, as contradições e os conflitos, tentando convencer-nos que a história escrita é um bom tapete para esconder a história vivida. Só que a história é muito mais que a composição de retratos para a galeria de palácios de recordações de ilustres figuras. Como nada convenceu, fica a tarefa de entendimento para outros. Os que nos expliquem, mergulhando no estudo, na análise e na interpretação, como foi a história de Moçambique independente e o papel das suas figuras no poder, mais substanciais que os episódios e sortilégios da dinâmica de influência e convencimento de Samora Machel e Joaquim Chissano. No mínimo, não cometendo o escândalo de conseguir "passar em branco" a célebre "operação produção", de recortes polpotianos, em que os citadinos indefesos caçados aleatoriamente em rusgas em Maputo eram lançados para o extermínio da "reeducação" nas matas do Niassa (fornecendo, por efeito perverso, a base inicial de apoio ao MNR/Renamo), uma tragédia inapagável pela amnésia impensável (imitando Guebuza, o coordenador operacional da "operação produção") em quem então dirigia a segurança de Estado e se sentava nas cadeiras mais altas do poder junto ao cadeirão-mor de Machel, e que, exibindo tão despudorada desmemória, destroça a espera de honestidade alimentada na expectativa perante a leitura deste livro, transformando-o em mera obra de enfeite narcisista e desqualificando-o como contributo histórico.
(1) – “Memórias em voo rasante”, Jacinto Veloso, Editora Papa-letras.
(2) – Jacinto Veloso, moçambicano filho de colonos, oficial piloto-aviador das Forças Armadas Portuguesas, desertou para a FRELIMO em 1963 pilotando um avião militar (voando num T-6, com outro fugitivo e armamento, de Moçambique para Tanganica que, depois com a união a Zanzibar, formaria a Tanzânia). Até à independência de Moçambique, desempenhou funções subalternas ao serviço da FRELIMO e nunca tendo participado directamente na luta armada contra o exército colonial. Após a independência, tendo ganho a confiança pessoal de Samora Machel, desempenhou altos cargos governamentais e na Frelimo, nomeadamente em tarefas de segurança e de acção diplomática. Foi, no contexto dos movimentos de libertação e dos Estados independentes construídos nas antigas colónias portuguesas, aquele que, entre os brancos "puros" nascidos em África, atingiu maior proeminência na gestão dos assuntos de Estado, para mais intervindo nas áreas nevrálgicas da segurança, espionagem, contra-espionagem e assuntos diplomáticos [os "particularmente delicados" (como foram os acordos com a África do Sul e o deslizamento das relações preferenciais para com os Estados Unidos, França e Inglaterra para substutirem o anterior enfeudamento de Moçambique ao marxismo-leninismo, à URSS e seus satélites)].
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Adenda: Ler sobre este livro, a apreciação de Joana Lopes, ilustre blogo-companheira nascida em Moçambique e uma entrevista com o autor do livro que impressiona pelo tanto que o poderosos general "não sabe" e "nunca soube".
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