Arrisco considerar o livro de António Tomás, jornalista e antropólogo angolano, dedicado a biografar (ou radiografar?) Amílcar Cabral (*) como a obra mais elucidativa para a compreensão serena e desmistificada dos movimentos de libertação africana que lutaram contra o domínio colonial português.
Contra a empresa da porfiada pesquisa de António Tomás contava-se á partida o risco de tocar, com um dedo que fosse, no mais intocável dos dirigentes anticoloniais, porque indiscutivelmente Cabral foi, entre todos, o mais capaz, o mais inteligente, o mais culto e o mais eficaz (no quadro das condições comparativamente mais difíceis) no abalo do domínio colonial português. E, ultrapassando o quadro desse império sob abalo, Amílcar foi um dos grandes dirigentes, talvez repartindo o pódio com Mandela, que mais contribuíram para pensar, dignificar e prestigiar África. Se juntarmos o facto evidente que os sucessos do PAIGC foram determinantes para as independências de todas as colónias portuguesas (as que lutaram muito, as que lutaram pouco, as que lutaram bem, as que lutaram mal, até as que nada lutaram) e para o próprio pulverizar do regime da potência colonial, mais o martírio de Cabral, assassinado na véspera da celebração da sua vitória guerrilheira, juntando ao eco pungente das balas da brutalidade traiçoeira o “benefício” de se eximir a demonstrar os dotes de estadista na concretização dos seus projectos para o Estado Guiné-Cabo Verde (?), passando da utopia à realidade, temos o quadro acabado do mito quase perfeito. A seu favor, António Tomás tinha, além do seu talento e da sua honestidade histórica, apenas três “pequenos” trunfos: ter nascido depois de Cabral ter desaparecido o que lhe permitia alguma impertinência para com o mito (assim fosse capaz, como foi, de se libertar do preito perante um ilustre “mais velho”), não ser guineense nem caboverdiano proporcionando-lhe um descentramento da idolatria nacionalista, estar folgado relativamente aos figurinos dos estereótipos ideológicos das abordagens da questão colonial (assumindo uma africanidade madura sem necessidade das âncoras exclamativas das charangas épico-libertadoras).
Todos os escolhos foram vencidos, com mérito, por António Tomás, resultando um quadro de desafio no pré-conhecimento de uma figura política e histórica marcante, pesem embora as deficiências impostas pelas largas lacunas nos suportes testemunhais e documentais que a investigação teve de defrontar. E, para além da aproximação à figura concreta de Cabral, ao seu percurso, obra e contradições, com genialidades e simplificações utópicas nunca fundamentadas (e posteriormente desmentidas nos resultados, nomeadamente a ideia base da unidade Guiné e Cabo Verde), a própria dicotomia colonial / anticolonial adquire uma invulgar transparência serena (do que beneficiam, inclusive, os portugueses).
Finalmente, duas notas de senão. Primeira, para o incompetente trabalho de revisão desta primeira edição (são frequentes as repetições seguidas de vocábulos). Segunda, na parte final do livro, António Tomás é arrastado por um “erro da PIDE” quando confunde, sobre a “ofensiva final” do PAIGC, Guidage com Guileje (reproduzindo um conhecido erro do relatório da PIDE sobre os ataques contra as praças militares portuguesas), o que é mais um exemplo da necessidade permanente de cotejar os dados quando se consultam os arquivos da PIDE.
(*) – “O Fazedor de Utopias, uma biografia de Amílcar Cabral”, António Tomás, Ed. Tinta da China.
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