Sexta-feira, 12 de Maio de 2006

SOBRE FUZILADOS NA GUINÉ

Um dos canais televisivos (RTP - «Órfãos de Pátria», da responsabilidade do jornalista António Mateus) reavivou a memória do drama dos “comandos africanos”, os quais, tendo combatido no exército colonial português e permanecendo na Guiné-Bissau após a independência, foram fuzilados pelo PAIGC, ainda não tendo sido assumida a autoria e responsabilidade de quem deu as ordens de fogo da matança de vingança (Nino Vieira empurra para Luís Cabral, Luís Cabral empurra para Nino Vieira).

Concordo com o argumento de que o exército colonial devia ter protegido, em plano de absoluta igualdade, todos os que o serviram. Da única forma que podia ter sido viável – trazê-los para a Sede do (ex)Império. Como, aliás, se fez relativamente aos pides. Até porque, falando de escumalha, não encontro medida para achar que um pide fosse melhor rês que um guineense que traiu o seu povo, lutando pelo lado do ocupante. Pois que um torturador e assassino impune, um homem que fez profissão da tortura e do desmando, também renega a sua pátria – a da humanidade, do direito e da civilização. Seria ele “melhor” que o guineense que lutou pelo Império e contra a Guiné? Não creio.

Devíamos ter trazido, na descolonização, todas as nossas porcarias, as próprias de ocupantes que fomos. Recolhendo o nosso lixo mais o lixo que ajudámos a criar, multiplicar e acumular. Se trouxemos de volta militares culpados (embora sem culpa formada) de crimes de guerra, mais outros culpados de invasão de países estrangeiros tentando executar em terra alheia golpes de estado; se trouxemos impunes abusadores; se trouxemos vaidades com os “nossos feitos” no “cumprimento do dever”; se trouxemos um falar em que se mantém o termo “turra” para aqueles que combatemos e nos combateram; se até Spínola trouxemos e ainda o fizemos Presidente; se trouxemos a eterna incapacidade de entender que fizemos uma guerra que perdemos e em que cada um que lá esteve alguma coisa de si ali perdeu; se nunca apurámos se todos os peitos medalhados com cruzes de guerra e torres e espadas o foram por valentia cometida por homens leais na guerra ou se têm, á mistura, alguns peitos inchados de crime e de abusos; se trouxemos os pides e outros mais; se trouxemos essa forma atávica de olhar os guineenses, mais os restantes africanos, de cima para baixo e continuamos a falar deles como sendo simpáticos bárbaros que sem nós não passam; devíamos ter trazido, e protegido, todos os que nos serviram. Porque as pessoas decentes não deixam lixo em casa alheia, trazem-no para depositar nos seus contentores caseiros, suportando-lhes o mau cheiro, inclusivé um bem pestilento - o da traição ao seu povo.

Só podem merecer repúdio as execuções sumárias, esse macaquear de justiça dos vencedores guerreiros, iníqua, cruel, desumana e cobarde (tanto que quem deu a ordem não assume a autoria), de que foram vítimas os traidores da Guiné e nossos companheiros de barricada na guerra colonial. E é uma vergonha que nos deve envergonhar. Nem menos. Abandonando-os ao “ajuste de contas”, cometemos (os coloniais), uma dupla sacanice – servimo-nos da sua traição de sacanas, depois deixámos os sacanas à mercê do destino pior que se reserva aos sacanas (morder o pó da vingança). Mas daí até se transformar um sacana, o melhor que seja entre os melhores sacanas, em herói ou patriota de pátria ocupante (o que é, como identidade, um anacronismo), além do silêncio conveniente com as nossos muitos milhares de sacanices dadas em desconto para o rol inimputável das “contingências da guerra”, vai um passo, digamos, de grande (demasiado) tamanho, com alguma desfaçatez à mistura mais uma mão bem cheia de hipocrisia insuflada de duplicidade moralista.

Publicado por João Tunes às 01:10
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6 comentários:
De Marco Oliveira a 12 de Maio de 2006
Estava a ver que nunca mais escrevias sobre este assunto.
Eu também acho que todos estes antigos comandos guineenses deviam ter nacionalidade portuguesa (e privilegios iguais aos de todos os ex-combatentes).
Serviram Portugal (num papel muito triste, é certo) e esse serviço deve ser reconhecido.
De Eugénio Costa Almeida a 12 de Maio de 2006
Caro João Tunes, não creio que o facto de um guineense ter lutado ao lado do exército português - e quem diz guineense diz outro qualquer - tenha de levar o epíteto de "rês" ou "traidor". Muitos o terão feito por auto-defesa, outros por dinheiro e outros por convicção que alguns ainda hoje mantêm ao afirmarem-se portugueses em vez de nacionais desses países. Até porque também houve portugueses que aderiram aos movimentos, lutando contra o exército português e ninguém ousa chamar-lhes traidores mas, libertadores e anti-fascistas.
Por outro lado comparar estes homens a elementos da Pide/DGS, um torturador ou trucidador, é, peço desculpa, comparar hienas a mabecos, as primeiras, falsas e ladras, e os segundos uns lutadores, às vezes, é certo, sem escrúpulos.
O problema aqui está, unicamente, no não respeito das autoridades portuguesas - militares ou civis, não discuto - em não proteger aqueles que desejavam manter as quinas como sua bandeira de orientação. Esse foi - e ainda é, como se viu - um dos grandes problema da descolonização portuguesa que já deveria estar sanado por completo, passados que são 30 anos de descolonização.
Kandando
Eugénio Almeida
De João Tunes a 13 de Maio de 2006
Caro Eugénio, pela consideração impoluta que nos relaciona, vou admitir sem rebuço nem rancor que leu apressadamente o meu post. E, sabe-se, ler apressadamente o quer que seja, o que acontece a qualquer um pelo menos uma vez na vida, é sempre pior que não ler. Por isso, rogo-lhe que o releia (o post), sem preconceito se possível, poupando-me o trabalho chato de estar para aqui a sublinhar deturpações que só podem ter vindo da “diagonal” da leitura. E depois ainda fico à espera, pedido complementar, e sabendo das suas raízes angolanas, que um dia, quando tiver pachorra e para aí se virar, nos diga o que foram e fizeram os “Flechas” na Angola colonial. Dessa forma, além do valor do testemunho, poupa-me contar aqui, mexendo e remexendo em porcaria, ter de falar sobre a forma como “combateram” os “Comandos Africanos” na Guiné. Mas num aspecto estou completamente de acordo com o seu comentário (disse isso no post, mas repito para maior clareza): devia ter sido aplicado (e porque não corrigir o que ainda for a tempo?) o princípio das Legiões Estrangeiras na cobertura de quem serve uma bandeira, independentemente das motivações e das práticas desde que sustentadas pela hierarquia. Ou seja, dar-lhes a mesma protecção que é (foi) concedida aos nacionais. Defendo que, para todos os militares guineenses (idem para os casos das restantes antigas colónias) que serviram sob comando das Forças Armadas de Portugal e das forças repressivas ao serviço do colonialismo, desde que optem pela nacionalidade portuguesa (oportunidade que lhes devia ser concedida), recusando a nacionalidade guineense, tornando assim coerente a tal opção pelas “quinas” como “sua bandeira de orientação”, aplicar-lhes a protecção, direitos e deveres concedidos a todos os ex-combatentes “metropolitanos”. Para o caso dos descendentes dos “fuzilados”, a menos que um milagre os ressuscite, defendo que lhes devia ser garantido, sem necessidade de opção de nacionalidade, a prestação de uma (proporcional) pensão de sobrevivência. À alfinetada despropositada dos “anti-fascistas”, não respondo. Reduzo-me ao sorriso de quem lhe acha graça e o estima. E quantas vezes um sorriso vale mais que mil palavras? Abraço
De Eugénio Costa Almeida a 13 de Maio de 2006
Meu caro João Tunes, admito que li talvez demasiado em viés e isso, como muito bem diz acaba por ser mais que não ler, ser uma má-leitura.
Mas mesmo assim penso que - e desculpe-me se me está a escapar a ironia, que admito estar subjacente - chamar de rês, sacanas ou traidores a quem lhes foi quase imposto um ideal - o ideal do Império multicolorido (o célebre selo de povoamento) - parece-me forte. Admito que estes termos estarão, eventualmente, sob uma capa de ironia, porque percebe-se que existe "uma raiva" no texto contra o muito que se fez, o muito que se devia ter sido feito e não se fez. Subscrevo, integralmente, a pergunta relativa às condecorações. Quantos os as ganharam sem que para isso tivessem feito um naco e muitos devem-nas, por certo, aos tiros que outros sofreram.
Quanto ao "anti-fascitas" acredite que não era uma alfinetada mas, tão só, como no caso das condecorações, haver alguns que nunca o foram e depois apareceram na ribalta como tal e ostentando essa "condecoração" para usufruir de vantagens que outros, esses sim merecedores, nunca as quiseram e até morreram por causa delas ou porque nunca se considerarm merecedores delas.
Um outro facto que aborda também eu gostava de vir a saber quem foi quem. Luís ou Nino? Talvez um dia se saiba mesmo a verdade dura e crua.
Quanto aos Flechas e aos GEE's - havia uma diferença entre uns e outros - ora aí está um repto para pensar. Realmente tal como com o Batalhão Búfalo penso que já será altura de se analisar esta problemática sem pruridos.
Em qualquer dos casos, e como muito bem refere Marco Oliveira, foi bom ter falado no assunto; e acredite que mais vale falar nos assuntos, mesmo que algumas sensibilidades fiquem feridas, porque só assim certos temas deixam de ser tabus e certas feridas poderão mais facilmente serem saradas. A discussão às vezes é muito útil, até para desfazer eventuais mal-entendidos e evitar leituras nas "diagonais" como foi o meu caso. Mea culpa.
Um abraço e espero ter esclarecido tudo.
Kandando
Eugénio almeida
De Anónimo a 12 de Maio de 2006
Caro João Tunes, o seu artigo faz-me lembrar o debate sobre os Harki que envenena a sociedade francesa desde os anos 60. Co eles aconteceu exactamente a mesma coisa, eram argelinos, soldados do exército francês durante a guerra da Argélia e alguns participaram em torturas, execuções sumárias e ajustes de contas, depois muitos foram abandonados à sua sorte e acabaram massacrados após a libertação.

Pedro Ferreira
De Hermano Noronha a 16 de Abril de 2012
procuro informações sobre João Bacar Djaló.

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