Manuela Cruzeiro (*), através de um interessante e oportuno post, recoloca a questão do valor no trabalho histórico, em termos de rigor, da recolha testemunhal por via oral. E descompõe um velho preconceito historiográfico de aversão à oralidade como fonte de recolha da memória, que dogmatiza a valia dos documentos escritos como carpintaria exclusiva na pesquisa histórica. Não deixando de alertar:
Não discuto que os documentos orais (exactamente como os escritos) têm que estar sujeitos à crítica, mas não apenas à crítica da comunidade científica, que como a própria história tem abundantemente provado não é imune àquilo que tanto teme e pensa esconjurar: embustes, falsificações ou manipulações.
Obviamente que manipulação tanto existe pelo legado escrito como pelo depoimento oral. E se os constrangimentos manipuladores não são da mesma natureza, ou mesmo de idêntico grau, admitindo-se que a via da oralidade convida a uma retórica justificativa mais elaborada do personagem e do seu grupo de afinidade, o certo é que a recolha de depoimentos orais permite, ao contrário da rigidez do documento depositado (com um eventual manipulação sepultada e difícil de questionar na sua cristalização), a aplicação de técnicas dinâmicas de entrevista, com exploração de pontos escuros e a detecção de contradições, mais ampliar o desbravar da memória. Isto para não se falar da amplitude de recolha que a oralidade permite, quando os personagens históricos ainda estão vivos, permitindo chegar-se a muitos mais depoimentos dos que ficam depositados como herança escrita espalhada por vários arquivos (quando estes os recolhem e estão acessíveis) e ir-se além, na foto histórica do acontecimento, da perspectiva das figuras secundárias ou passivas dos acontecimentos pois que o memorialismo escrito normalmente se circunscreve aos líderes dos acontecimentos (os mais interessados, também, em manipular a herança da memória).
Num livro recentemente editado, a que já aqui nos referimos e cuja importância enaltecemos, que resume a tese de doutoramento de Irene Pimentel sobre a(uma) história da PIDE, a autora assumiu explicitamente a opção por se cingir ao suporte documental escrito depositado em vários arquivos, abdicando totalmente do recurso a qualquer testemunho oral. Justificou-se a historiadora dizendo que eventuais testemunhos de agentes da PIDE iriam contaminar os factos (nomeadamente quanto à prática sistemática e institucionalizada da tortura) pelo inevitável discurso desculpabilizante que acabariam por distorcer o retrato histórico da PIDE como realidade policial do fascismo português. A opção é, naturalmente, não só legítima como eticamente meritória. No entanto, Irene Pimentel socorreu-se abundantemente quer dos relatórios fabricados pela própria PIDE (e esses relatórios, para além do objecto da informação, não só justificavam pessoas como tendiam a enaltecer a instituição, envernizando a sua eficácia) como de alguns livros publicados com memórias de alguns dos quadros policiais. E não deu, o que foi pena (mas talvez por ela não existir) a medida de distinção entre o poder manipulador de um livro de memórias de um agente policial e o conseguido por um depoimento verbal desse mesmo esbirro. Porque a confirmação e o cruzamento entre fontes, cuidado a que naturalmente a autora assumiu e se obrigou, tão possível é entre papéis escritos como entre registos orais e, ainda, uns com os outros.
No fundo, a história vive da construção de lógicas humanas e sociais reconstruídas pela acumulação de sinais e testemunhos (o máximo de testemunhos, independentemente da fonte e da forma de recolha), com peneira constante das manipulações (ponto ideal que se atinge numa sequência de “tentativa e erro”, como acontece com qualquer ciência). E quanto a manipulação, se a sua prevenção primeira cabe ao historiador (que mais não seja por dever académico) a última, quiçá a mais importante e decisiva, cabe ao leitor que tem de lidar com o labirinto das fontes utilizadas no trabalho histórico (procedendo a uma “segunda peneira”) como ao próprio acto manipulador do historiador (ele também um “manipulador” enquanto “interessado” na síntese percebida do acto de memória tentada).
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Nota inútil: Como se nota à légua, este post é arroubo arrogante de um leitor de história (calejado, por imperativo de lucidez tentada, a ler, em várias leituras, as "histórias" publicadas) que, surrateiramente, se enfiou nos quês do mister reservado aos encartados na poda do fazer(-nos) história. Oxalá esta declaração expressa, penando por desnecessária, conte com a benevolência das duas admiradas autoras aqui citadas e às quais este cidadão muito agradece os contributos que deram à reconstrução da memória histórica, desejando-lhes(-nos) próximos acrescentos.
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(*) Autora de um vasto espólio de recolhas de depoimentos orais, vários editados em livros, de figuras ligadas ao 25 de Abril. Este aturado e talentoso trabalho de Manuela Cruzeiro é, hoje e para memória futura, consulta obrigatória para o entendimento de aspectos essenciais da gestação do 25 de Abril e do PREC. E, em vez de “acrescentar manipulação”, os livros de Manuela Cruzeiro são fontes necessárias para relativizar e baixar o nível de ruído manipulador que os “documentos oficiais”, as “notícias” e os “comunicados partidários” transportam para dentro dos arquivos.
De marceloribeiro a 11 de Novembro de 2007
A MC é uma trabalhadora inteligente além de ser uma amiga antiquíssima. Permanece bonita o que é um mistério para todos nós continua brilhante a cada livro que vai saindo mas isso já não nos admira nada. ela é assim.
O João Tunes às vezes é modesto demais: ele picareta diariamente uma série de coisas trá-las à discussão e arrisca opiniões. Só isso já chegava. Mas depois pede desculpa. De quê, João?
Do que nunca pedirei desculpa é por concordar que realmente a Manuela Cruzeiro é uma mulher muito bonita. Mas sem que tal tenha qualquer mistério pois será mero efeito colateral do seu talento.
De Augusto a 11 de Novembro de 2007
Este post levanta uma questão muito pertinente e que
a mim próprio me coloquei quando da leitura do livro de Irene Pimentel.
A historiadora alerta o leitor, logo na Introdução, para
as enormes dificuldades que um trabalho de investigação nesta área acarreta, mesmo recorrendo
unicamente a fontes escritas e "oficiais".
E informa que optou por não utilizar a chamada história oral, justificando a sua atitude por a considerar
menos fiável.
Não sendo especialista em História, não estou em con-
dições de discutir os argumentos dos que estão a favor
ou contra esta posição.
Mas como leigo algumas dúvidas se me colocam:
Se um testemunho oral não constitui necessariamente
uma prova fiável, a existência de uma fonte escrita,
ou a sua ausência também não a constitui.
Qual o Sócrates (não o José) mais próximo do Sócrates histórico?
A personagem "Sócrates" dos diálogos platónicos, a de
Xenofonte, ou a descrita por Aristófanes em "As Nu-
vens" ?
Passados 2500 anos a controvérsia continua.
O facto de existirem fontes escritas parece que não
facilitou muito a descoberta do enigma.
E sobre tempos recentes. Será que uma investigação
sobre os mesmos acontecimentos realizada pelo Prof.
Fernando Rosas e pelo Prof. Jaime Nogueira Pinto que
colocariam, certamente, o mesmo rigor no seu traba-
lho, chegaria às mesmas conclusões ?
Penso que não. E não considero isso preocupante.
Já lá vão os tempos do pensamento único.
Cabe ao leitor do estudo perceber que existem sempre
"filtros" ideológicos que afectam,não só, quem escreve
mas também quem lê.
A história será sempre uma reconstituição de aconteci-
mentos e a realidade será sempre mais rica e complexa que um conjunto de documentos escritos.
Rigor matemático em história é, quanto a mim uma
ilusão.
(Atenção, nada de confudir isto com o relativismo epis-
témico dos pos-modernistas, agora muito na moda)
Mas voltando ao não recurso à chamada história oral.
Como se deve entender esta afirmação? Que a autora
não registou testemunhos orais dos "actores" dos
acontecimentos ?
Mas ,ao longo do livro, existem inúmeras transcrições
de testemunhos orais prestados por diversas pessoas
a jornalistas que depois as publicaram.
Será que aqui não estão presentes os inconvenientes
apontados?
E muitos documentos escritos (livros) que têm sido elaborados por, ou com a colaboração de figuras públicas sob o título de memórias, não se limitam a
narrar acontecimentos. Frequentemente pretendem
"fazer a história" ou auto-justificarem acções passadas.
Nesta teia da história, a vida de historiador é mesmo difícil.
Ui, a Irene Pimentel tem outra vez as orelhas a arder... Será que tem tempo e paciência para voltar a dar-nos troco?
De Augusto a 12 de Novembro de 2007
Caro João,
O meu comentário não deve ser entendido, de forma
alguma, como uma crítica à obra de Irene Pimentel.
Tenho grande admiração pelo excelente trabalho que
tem realizado e também pela sua pessoa.
Não é frequente, em Portugal e sobretudo no meio
académico, alguém responder de forma tão rápida e
simpática a comentários colocados num blog como IP
tem feito.
Um abraço.
Obrigada, Augusto. Pegando na «vida difícil do historiador», parte das dificuldades com que ele se confronta têm a ver com as sucessivas escolhas a que ele é obrigado, sempre com a preocupação de não falsificar o que se passou, embora saiba que nunca se chega ao que «realmente se passou», como foi outrora a convicção dos positivistas. Escolhe os limites cronológicos e temáticos, bem como escolha das fontes, entre outras selecções. Escolhemos uma, em vez de outra, extractos de uma em vez de outros extractos A própria citação, a que se recorre não constitui uma prova, dado que é quase sempre possível fornecer uma citação contrária àquela que se acaba de escolher. Por outro lado, a narrativa do «vivido» coloca ainda um problema de escrita, pois que, ao colocar o depoimento por escrito, o historiador não deixa de escolher as palavras para fazer ouvir a testemunha. De certa forma, ao citar, o historiador estabelece-se em saber do outro e, nesse sentido, priva a testemunha da sua própria palavra, como diz Michel de Certeau.
A História oral, expressão que vem do inglês, fundada sobre o inquérito oral, sugere a pretensa superioridade do «oral», sobre os arquivos escritos, na medida em que a palavra seria dada aos ignorados pela História e aos «de baixo». Não tenho dúvidas nenhumas sobre a importância do «testemunho oral» - o recurso a esta fonte só se coloca na história contemporânea, do contemporâneo próximo, tais como, entre outras, as fontes cinematográficas ou televisivas -, nomeadamente por ser aquele que nos dá melhor um contexto e retira do silêncio e do esquecimento pormenores que de outra forma não são. À sua maneira, a memória de uma testemunha dá conta das transformações sócio-históricas à escala de uma vida, mas tem as suas próprias imperfeições, pois é selectiva, assimila as convenções sociais que incitam, ou não, a embelezar, recalca coisas consideradas anódinas e chega mesmo a censurá-las. A memória é condicionada, pelo esquecimento, pela transformação e pela selecção das lembranças.
Eu própria recorri a muitos testemunhos, não expressamente recolhidos por mim, mas por outras pessoas, nomeadamente por Manuela Cruzeiro (testemunhos de Eugénia Varela Gomes, Francisco da Costa Gomes e Vasco Gonçalves), bem como a muitas entrevistas e livros testemunhais, mesmo sabendo que estes são construídas ou reconstruídas. Qualquer fonte é aliás reconstruída, quer pelo historiador, quer pela testemunha, além de ser reconstruída, através da duração, que separa o momento rememorado do momento da narrativa. O historiador Jean-Jacques Becker referiu o handicap do a posteriori, daquilo que é construído posteriormente ao evento descrito. Se o historiador pode corrigir um erro material, apresentado pela testemunha, já não o pode fazê-lo, relativamente aos sentimentos e às emoções expressas a posteriori, as quais pertencem mais à época em que é dado o testemunho, do que ao momento contado pela testemunha. Por outro lado, a memória das testemunhas, no que se relaciona com o estabelecimento de uma data, de um local e de um facto é menos fiável do que, de um modo geral, os documentos, embora escape, nestes últimos, o «vivido», o ambiente e o contexto, necessários à compreensão e que são transmitidos pelos actores dos acontecimentos.
É certo que também as fontes escritas não deixam de ser construídas, mas diferem das fontes orais, no sentido de não serem destinadas ao historiador, nem produzidas por ele. Ao questionar a testemunha, o historiador fá-lo em função de um saber prévio, de uma narrativa de eventos que ele já construiu de antemão e à qual faltam certos encadeamentos e cadeias. Saber e narrativa essas que a testemunha desconhece e ignora.
Como disse, tive de proceder a escolhas metodológicas e, neste estudo específico, optei por não utilizar a entrevista. Por diversas razões já apontadas e por outra, que já agora refiro, mas que não caberia realçar numa dissertação de doutoramento:
- a já referida profusão de fontes a que se teve acesso;
- a existência de muitos testemunhos escritos
- e, sobretudo, da impossibilidade de entrevistar, paralelamente aos ex-presos políticos e opositores ao regime que foram alvo da PIDE/DGS, um número suficientemente grande de ex-elementos desta polícia, que se recusaram a prestar depoimento
A estas razões, acrescenta-se outra, muitíssimo subjectiva: o facto de eu própria ter um «envolvimento» com a PIDE, salvo seja, na medida em que fui politicamente activa e o medo de ser presa e de não saber como me comportaria sempre me perseguiu, nos últimos anos da ditadura. À partida, tinha toda uma carga subjectiva e tudo menos neutra relativamente ao objecto de estudo. Sabendo que não há neutralidade, acho que o investigador deve fazer tudo para tender a ela e tive de me precaver contra as minhas próprias emoções, não contaminando as testemunhas. Tive de defender-me, no caso dos «carrascos», da total ausência de empatia e, no caso das «vítimas», da completa simpatia. Aqui está uma «confissão», neste texto que já vai longo.
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