Este companheiro individualista, apesar e por causa do seu admirável texto céptico, não dando mostras de ter ficado impressionado com 200.000 operários a desfilarem no Parque das Nações (quem sabe se, por heresia, achou que a maioria eram reformados ou empregados públicos) já deve constar da lista negra do Miguel do post anterior:
Cresci na ilusão democrática. Embora nos contássemos pelos dedos de uma mão, isso era uma circunstância. As massas populares, que tinham escrito a história, desde a Roma de Spartacus até à recente Cuba dos guerrilheiros românticos, irromperiam em cena também neste país. Viriam de barco, desaguando no Rossio, como previa o poeta no seu primeiro livro. Seríamos muitos, nesse dia limpo, nessa madrugada clara. Quando comecei a pensar, o que aconteceu tarde como os que acompanham estes posts já sabem, percebi que não tinha confiança nenhuma nas massas populares. Os verdadeiros proletários desiludiam. Diziam-me: são o lumpenproletariado. Entre mim e os camponeses houve sempre, injustamente, os gritos do porco na matança, a cacetada no coelho, a degola das aves ou a textura do diospiro. Já com os intelectuais as coisas eram mais fáceis. Não com os artistas. Gosto do produto da actividade dos artistas mas assusta-me o desequilíbrio, a precaridade, o experimentalismo e o sexo em grupo. Professores, só universitários, da espécie em licença sabática permanente. Com os outros confesso ter pouca empatia: horários de vinte e sete horas semanais, problemas de disciplina, depressão na Páscoa, pneumonites ao giz, colocação no quadro de zona pedagógica. Não resisto a tamanha miséria. Gosto dos artífices e artesãos: carpinteiros, estofadores, canteiros, ferreiros. Mas parecem estar em extinção. Também gosto das floristas, das que nunca cheguei a conhecer: a da Estrada de Benfica, a florista de Mangualde. Acontece que todos estes grupos, que enumero, já não têm sindicato, associação só liquidatária. Aproximei-me demasiado dos especialistas em arte conceptual, dos psicólogos evolucionistas, dos neurocientistas, dos geólogos que estudaram a última glaciação. Por um motivo ou outro fui rejeitado.
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