Apesar das limitações apontadas por Rui Bebiano, o livro de Arkadi Vaksberg recentemente editado (*) é um documento sólido e fundamental para se entender (tentar entender-se) até onde podem ir os não limites do crime como acção de Estado.
Embora centrado no “laboratório de venenos” criado por Lenine em 1921 para exterminar os inimigos dos bolcheviques, a pesquisa levanta a teia monstruosa que transformou o assassínio em meio de luta de classes. Por envenenamento, por fuzilamento, por acidentes provocados ou por liquidação “medicamente assistida”. Seguindo duas espirais de desenvolvimento: pela sofisticação dos meios de liquidação física (tendo em conta os factores eficácia e anulação dos rastos do crime) e pela abrangência das vítimas (primeiro, para liquidar inimigos “contra-revolucionários”, depois na liquidação de camaradas incómodos ou rivais na repartição ou concorrência de poder). Tudo justificado em nome do direito dos poderes comunistas em se defenderem e purificarem-se. E tão justificado que, dos pontos de vista ético e moral, o crime se tornou legítimo e institucional. Porque quem assassinava o fazia do pedestal intocável da auto-atribuída superioridade moral (e política, e partidária) do proletariado organizado, enquanto os envenenados, os caídos, estavam pragmaticamente catalogados no rol da contra-revolução e da traição.
Na nova Rússia, a herdada da URSS, todo o aparelho de crime científico e organizado laboriosamente edificado pela polícia política comunista nas suas sucessivas transmutações sádicas (Tcheka, OGPU, GPU, NKVD, KGB), manteve-se intacto e passou para o aparelho russo de segurança e repressão na actual versão FSB. E o facto de o detentor do poder máximo russo (Putin) ser, ele próprio, um antigo oficial do KGB, exercendo o poder assente numa corte de seus antigos colegas de ofício, permitiu uma assimilação suave das velhas práticas, mantendo e sofisticando mais os meios para eliminar adversários e outros incómodos. Hoje na Rússia, como antes na URSS, o crime continua a ser um simples meio de fazer política. Pela bala ou pelo veneno. Foi e é assim com jornalistas que investigam e escrevem o “que não devem”, foi assim com o “transviado” Alexander Litvinenko ou com o político ucraniano a querer libertar-se do “abraço russo” (Victor Yushchenko). Porque, implodida a URSS, a prática amoral leninista continua.
(*) – “Laboratório de Venenos”, Arkadi Vaksberg, Ed. Aletheia
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