O fraco espólio memorialista publicado pelos revolucionários profissionais clandestinos e a forma hermeticamente fechada como o PCP conserva encerrados os seus arquivos (não os disponibilizando aos historiadores), se tal obedece a uma estratégia de propaganda daquele partido em controlar permanentemente a composição do seu percurso e mitificar, mistificando, a sua gesta, num pânico permanente de que se revelem os podres, as misérias e os esqueletos, representa um sério problema no conhecimento, político e histórico, de uma parte fundamental do contraponto ao longo período da ditadura, em que a resistência ao regime passou incontornavelmente pela luta dos comunistas portugueses e na forma peculiar como estes conciliaram o combate ao fascismo com o alcance dos objectivos partidários próprios (passagem da revolução democrática à revolução socialista, instauração do comunismo). E, assim, o que de substantivo se vai sabendo, além da névoa das composições propagandísticas lançadas pelo PCP, ou é obra esparsa de estudiosos com dificuldade de acesso aos documentos e às fontes (caso de Pacheco Pereira) ou de dissidentes. Em qualquer dos casos, sempre meros flashes contaminados ou pela apologética, ou pela inexactidão, ou pelo preconceito ou, ainda, pelo ressentimento e pelo ajuste de contas. O PCP, pelos vistos, convive bem com estas insuficiências – o laudatório é recomendado, entrando na “literatura oficial”, o antipático e inconveniente é esconjurado para a vala comum da injúria e do anticomunismo. Entretanto, sobrando um lençol largo para sugerir mistério sobre a sua história, tanto melhor para o mito e a ilusão do comunismo português, que se alimentam mais de fé que de conhecimento e onde o preconceito ideológico e os estereótipos sobre santos, heróis, vilões e patifes chegam e sobram para manter serena a unidade crente da confraria. O défice sobra para o saldo exíguo da verdade histórica ou da aproximação a ela.
Pelo impacto recente de dois livros de dissidentes comunistas (o de Zita Seabra e o de Raimundo Narciso), com estragos provocados, apesar das insuficiências e debilidades de uma e outra obra, na imagem composta da fortaleza comunista, o PCP, através das “Edições Avante”, lançou recentemente um livro memorialista de um seu antigo dirigente já falecido, José Magro, que contou muitos anos de luta clandestina e de prisão (1). Aliás, é o próprio prefácio de José Casanova, o boss do “Avante”, que indica esse objectivo combativo da oportunidade desta recente edição:
“Uma das linhas deste ataque ao PCP – ataque que, insistimos, se insere na ofensiva contra o regime democrático – é a levada a cabo por ex-militantes do Partido que, num despudor e numa desvergonha sem margens e a pretexto de revelar as suas experiências partidárias, projectam uma imagem do PCP feita à medida dos seus interesses de abjectos trânsfugas: falsa, insultuosa, caluniadora, provocatória. E à qual os órgãos da comunicação social dominante - propriedade dos grandes grupos económicos e financeiros – dão a difusão que melhor serve os interesses desses grupos.”
E, para combater o efeito pernicioso das revelações desqualificantes dos tais “abjectos trânsfugas”, para mais num quadro político que se pinta como estando à beira do retorno ao fascismo [em que “as práticas do actual Governo assumirem contornos inequivocamente fascizantes” (sic), segundo Casanova], nada pareceu melhor ao PCP que editar umas adormecidas cartas de um dos seus heróis para dar conta da verdade da militância comunista no tempo da clandestinidade.
Definidos os objectivos da edição, o contraponto do bom comunismo à ignomínia dos dissidentes diabolizados, cujos testemunhos assim se pretendem anular, diga-se que o livro é de muito proveitosa leitura. E com incontornáveis oportunidade e utilidade para um melhor conhecimento do tipo do modelo do “leninista português” forjado pelo PCP. José Magro (2) revela, com alguma ingenuidade mas também com evidente sinceridade, a par de excepcionais qualidades de coragem física, domínio psicológico, resistência, generosidade e desprendimento, a forma autotransformadora pessoal como se processava a fanatização partidária, o desenvolvimento do espírito de obediência acrítica, a estreiteza de horizontes teóricos e culturais, a autoflagelação pelo recalque dos sentimentos, das emoções e das pulsões humanas (como a família, o amor, o sexo, a amizade) (3), a forma de se orientar entre os “firmes”, os “vacilantes”, os “fracos” e os “traidores” (4), a crença absoluta na URSS como iluminando as revoluções, na construção da personalidade do super-militante, o revolucionário profissional e clandestino, a pessoa que entregava a posse total de si ao partido. Afinal, dizendo, pouco mais ou menos, aquilo que Zita Seabra, para escândalo nacional, disse da sua memória enquanto militante comunista.
Obviamente que a resistência comunista ao fascismo só foi possível, e só era possível, com homens e mulheres excepcionais e autoviolentados como José Magro. Só um “exército de duros”, recheado de revolucionários integralmente devotados, resistentes, dispostos a "tudo" pelo partido, disciplinados, frios e fanatizados, suportaria as condições de serem clandestinos sob a extrema repressão que o salazarismo-marcelismo impunha. O que dá que pensar é, após mais de trinta anos de regime democrático consolidado, ter sido este o momento escolhido para a publicação destas “cartas” de José Magro. Será porque os “contornos inequivocamente fascizantes” já andam por aí e é preciso preparar o retorno à clandestinidade?
(1) – “Cartas da Clandestinidade”, José Magro, Edições Avante
(2) – José Magro, com uma longa carreira partidária na clandestinidade, foi um dos “campeões” em tempo de permanência nas prisões políticas, tendo permanecido mais tempo preso pela PIDE que em actividades clandestinas. Foi membro do Comité Central ainda antes do 25 de Abril e aí se manteve até ao seu falecimento. Apesar de ser um dos mais incensados heróis comunistas, a seguir ao 25 de Abril estagnou na sua promoção política nunca ascendendo aos lugares cimeiros de direcção, ficando-se como responsável pelo Comité Local de Lisboa. Provavelmente, a sua participação no “desvio de direita” do V Congresso (1957) e ter ameaçado fazer uma greve da fome até à sua libertação de Caxias, tenha manchado o seu cadastro de revolucionário modelar.
(3) – Em 1975, sendo eu então militante do PCP, José Magro convocou-me para me transmitir a suprema honra do convite para que, pelos méritos revolucionários demonstrados, passasse a ser funcionário do PCP, ou seja, seu revolucionário profissional. Apanhado de chofre, respondi que ia pensar na proposta e consultar a minha mulher. José Magro, não escondendo o desagrado pela delonga, respondeu-me “está bem mas olha que, para um comunista, a família está depois do partido”. E eu, percebendo logo ali onde me ia meter, disparei de imediato “sendo assim, respondo já que não”. E fiquei sempre com esta dívida de gratidão para com José Magro: evitar-me, pela sua brutal sinceridade comunista, ter passado pela experiência de funcionário comunista.
(4) – Nestas suas memórias, escritas antes mas já muito perto de 1974, todos os militantes com quem Magro trabalhou na clandestinidade são tratados retroactivamente em função dos seus percursos posteriores. Os que depois vieram a divergir ou saíram do PCP, já “denotavam” maus comportamentos e fraquezas de militância. Os que se mantiveram na “linha justa”, eram todos exemplares (Cunhal, claro, era o maior). Por ironia, aquela que viria a ser a “besta maior” do rebanho (mais amaldiçoada que Zita), Cândida Ventura, merece tratamento abonatório e amigo. Neste caso, porque só “traíu” em 1978, já as “cartas” estavam escritas, Cândida Ventura foi poupada ao retoque no retrato.
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