
Cresci entre estantes onde não faltava qualquer livro do Mestre Aquilino (era assim que os seus devotos o tratavam no seu tempo). Cresci também com o complexo de demorar a conseguir entrar-lhe nos livros e depois nunca os finalizar. Sentia-me mal pelo conflito de, sendo citadino com raízes aldeãs, não desbastar com gosto e ligeireza aquela linguagem cerrada, beirã e vernácula, numa escrita camponesa em que as palavras sabiam a terra deixada nas enxadas. Fui persistindo e desistindo, desistindo e persistindo, até que devorei, num fôlego e em entusiasmo, o “Quando os Lobos Uivam” logo que este saíu e foi comprado "por baixo do balcão" ao livreiro cúmplice que abastecia a minha casa com os "proibidos". Apesar de saber, por isso me ter sido predicado, que aquela obra, apesar do seu impacto (meteu não só proibição da PIDE e histeria da Censura, como até julgamento), era a menor na dimensão literária do Mestre, uma sua presumida concessão à acessibilidade. Que fosse. Li e reli este livro e Aquilino, Mestre Aquilino, ficou-me reduzido a ele, mas da sua escrita não fiquei arredado. Não me pensando excepção, previ que quando os anos enevoassem a memória do Mestre, contumaz candidato falhado ao Nobel, como Torga, Sophia e Lobo Antunes, o único livro que perduraria em leitura e interesse seria o “Quando os Lobos Uivam” e todo o grosso de importância na obra de Aquilino, Mestre Aquilino, ficaria debaixo do pó da deslembrança literária. Parece que não me enganei. Infelizmente, digo, por respeito e reconhecimento a quem me fez crescer entre estantes com livros e onde Aquilino, o Mestre, pontificava na companhia da indicação solene verbalizada de “lê Aquilino se queres entender como se escreve no melhor português”. Para pobreza minha, que da língua mátria só tenho umas pequenas luzes e intermitentes, não consegui (ainda) cumprir aquele conselho sábio além do único livro que dele li.
Vão meter, ou já meteram, o Mestre Aquilino no Panteão. Com escândalo de velhas corujas que devem ter saído dos ovos das ainda mais velhas corujas que perseguiram o Mestre, bicando-lhe as canelas. E eu que de Aquilino Ribeiro só um livro lhe consegui ler, passo ao lado da algazarra. Por três razões simples: primeiro, porque o anarquista Aquilino se deve estar nas tintas sobre onde lhe enfiam os restos; segundo, no silêncio do Panteão já lhe dorme a maior parte da obra; terceiro, quem não lhe conhece a obra, por preguiça literária, caso meu, não tem direito aos galões de seu defensor. Quanto às corujas, essas que piem que o que interessa é que não uivam mesmo quando de lobos se disfarçam.
De marceloribeiro a 19 de Setembro de 2007
Caro João
Li e percebi as suas dúvidas e dificuldades. todavia V. não pode desistir. aquilino, de facto é um belo estilista.
\Faça-me o favor de ler estes livros que aqui lhe indico e que sendo menos romance são contudo muito interessantes e recorrem a um portugu~es menos dificultoso: Portugueses das sete partidas; Principes de portugal; O Cavaleiro de Oliveira (lello es) e sobretudo "A retirada dos 10.000" (tradução do clássico de Xenofonte). Garanto-lhe que esta receita se toma sem dificuldade e, mais, pode ter o efeito de o viciar em Aquilino. A partir desse momento, declino qualquer responsabilidade...
Um abraço
Onde eu cresci não havia estantes. Cheguei aos livros com a chegada às primeiras letras e a Aquilino muito mais tarde do que isso. Já andaria pelos meus 30 anos quando lhe li a primeira obra, o incontornável "Malhadinhas". E fiquei para ler mais coisas. Agrada-me "aquela linguagem cerrada, beirã e vernácula, numa escrita camponesa em que as palavras sabiam a terra deixada nas enxadas", como tão bem descreveste. Em relação à transladação, terminei noutro sítio uma postagem sobre o assunto: E raios me partam se o Aquilino não quereria antes que lhe lessem a porra dos livros e lhe deixassem os ossos em paz, de preferência numa qualquer serra das "Terras do Demo"!!
Um abraço.
De
RN a 21 de Setembro de 2007
Quanto aos Dez Mil que o Marcelo refere tenho uma relação de especial intimidade. Ando há anos a ver se descubro uma passagem da "Retirada" que me marcou nas minhas viagens pelas guerras que povoam a humanidade desde tempos remotos. E como não consigo encontrá-la lá volto eu uns meses depois a ler mais umas passagens da "Retirada dos dez mil". É já depois da morte de Ciro que não conseguiu o seu sonho - arrebatar o trono ao imperador, seu irmão primogénito, Artaxerxes, sucessor de Dario. Portanto na retirada de Babilónia (inatingida). Um exército farropilha de um qualquer daqueles reinos que da Capadócia ou arredores ousou fazer frente à elite guerreira do mundo de então os gregos hopelitas (infantaria pesada) e os peltastas (inf ligeira).
O exército "bárbaro" assumiu ao cume a observar o inimigo. Fez uma demonstração de guerra. Gritos, batuque e tal. O comandante olhou observou, fez as contas e bateu em retirada antes que aos gregos lhes desse na veneta vir ali destroçá-los. Sempre achei simpática esta forma de "ferir" a guerra. O comandante observa, recolhe dados, conclui que está em minoria de forças e vai daí poupa homens e sofrimentos. Bate em retirada para melhor oportunidade.
Aquilino conta-nos como se meteu nessa aventura da Anábase (título grego que ele explica traduzir-se por "marcha para o interior" mas que considera inapropriado pois dos sete livros de Xenofonte só o 1º versa o avanço enquanto a retirada ocupa os restantes 6.) Deu-lhe para estudar o grego, em Paris, quando estudava na Sorbone, quando Mr. Tournier lhe apareceu com uma versão em grego e tradução latina ao lado, edição de seiscentos. "Mais barato só um mergulho no Sena", explica Aquilino.
Obrigado pelos sábios conselhos dos amigos eruditos "aquilinistas". Lá chegarei.
De marcelo ribeiro a 23 de Setembro de 2007
Vá chamar "erudito aquilinista" a....
Ms leia A retirada...
É uma coisa magnifica: xenofonte e aquilino a contar uma aventura de gregos loucos mas audaciosos; heroicos mas prudentes; falazões mas disciplinados... Um mimo!
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