Ainda sobre a reportagem da RTP 1 sobre a Beira (Moçambique) e o seu decrépito Grande Hotel:
1) Um suspiro (de tristeza):
Foi, pois foi. Uma tristeza sem fim… Enquanto jantávamos estivemos a assistir ao programa na RTP1 sobre a Beira, em Moçambique. Ai... que coisinha má... que desassossego e não poderia ser de outra maneira. Aquilo virou tristeza e... em tempos era a alegria. A vida muda, de facto... e por vezes mais do que algum dia poderíamos pensar...
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2) Segundo suspiro (chocado):
Arranca a reportagem e... «Começou mal, pois para gerir o hotel foi contratado o dono de uma pensão com seis quartos em Trás- Os-Montes: logo no primeiro ano houve um desfalque». As mães de Bragança não se indignarão?
(Mas é chocante a forma como tudo aquilo foi reduzido a escombros... habitados. E a Beira não era propriamente um povoado perdido na mata...)
3) Voltando à “vaca fria”:
Visitei a Beira há quatro anos e levaram-me a ver (por fora) o degradado Grande Hotel (onde "viverão" 1.000 pessoas!). Como vi onde se ergueu uma réplica do "Moulin Rouge", espantei-me com um largo onde pontifica uma enorme estátua de homenagem à Coca Cola, admirei a bonita Igreja de Macuti e circulei pela zona comercial e habitacional, pejada de indianos e paquistaneses (que praticamente controlam todo o comércio formal). É uma cidade degradada (como é Tete e parte de Maputo, sendo excepção a relativamente bem conservada Chimoio, entre as cidades onde estive) e com marca de decadência que parece irreversível. A pujança da antiga Beira estava ligada (a cidade é "artificial" pois foi roubada aos pântanos e é amparada por diques) ao porto a servir a linha de escoamento, por via ferroviária, do minério das colónias britânicas fronteiriças e seu fornecimento de petróleo. E, sendo um feudo de Jardim (ele localizou lá uma fábrica da Lusalite que dirigia), o cônsul colonial puxava pela valorização da cidade e pelo bairrismo local, numa espécie de "disputa Porto-Lisboa" com Lourenço Marques. Com a independência, depois a guerra civil, a inoperacionalidade da linha férrea e o assoreamento do porto, Beira restou como uma cidade aparentemente inútil. Como não entender, enquadrando, o estado degradado e superpovoado do antigo Grande Hotel? E, no fundo, os habitantes daquelas ruínas nem vivem pior que na periferia do caniço. E o facto de a Beira votar maioritariamente Renamo (a Câmara é dominada por este partido) face a Maputo frelimista também não ajudará a que haja um consensual projecto de recuperação da cidade. Um meu amigo moçambicano (branco) nascido e criado na Beira, que me serviu de cicerone, recordava com mais saudade as aulas e convívio com Zeca Afonso (que lá foi professor do secundário) e a acção da igreja católica progressista (Bispo da Beira e Padres de Macuti), quanto ao resto perdido ou destruído limitava-se a encolher os ombros sem grandes sinais de indignação.
4) E a lucidez de quem viveu a Beira suspirada:
A Beira vai fazer 100 Anos, a Beira fez 100 Anos, e parece que o Grande Hotel da Beira passou a ser mais importante que a própria data secular da cidade. Parece que o Grande Hotel marca a diferença entre a prosperidade do passado (sic!) e a Beira actual em ruínas devido ser esta um centro anti-frelimo. O Grande Hotel em uma versão da Cidade da Lata vertical de Maputo pelas divergências da Renamo da Beira e a Frelimo de Maputo. Nisto tudo há uma certa lógica. O Grande Hotel do passado colonial é o mau exemplo de algumas das coisas que o colonialismo, levado até à segunda metade do Séc. XX debaixo do chicote da ditadura fascista, fez em terras moçambicanas, e o actual, ou o que sobra do mesmo, sendo o resultado do que há de mau de uma administração que não consegue resolver os problemas da miséria e das grandes diferenças sociais em pleno Séc. XXI.
Querer ver o Grande Hotel pelo ângulo saudosista é no mínimo um exercício masoquista ou não querer entender que ele nunca existiu a não ser na cabeça de alguns sonhadores, tenham sido eles arquitectos, engenheiros, usuários da sua bela piscina ou noivos.
(…)
O Grande Hotel da Beira não foi problema de saloios (no máximo, tanto quanto foram os do Hotel da Polana, da então LM) e nem por lá terem colocado um transmontano com experiência em administrar pensões. O problema (…) foi sim uma grande falta de estratégia e de planeamento.
A Beira serviu sempre muito bem para ter um belo porto e uma ferroviária para atender os países vizinhos, em especial a Rodésia. Já para o turismo, os bifes que lá chegavam eram mesmo para ficarem pelo camping do Macúti, e já vinham com os seus carros, e às vezes rolotes, abarrotados de mantimentos, pois nem para isso gastavam lá umas moedinhas para comprar nada nas mercearias locais, a não ser umas boas cervejinhas geladas nos bares. Alguns ainda ficavam no Motel Estoril e mais tarde no vizinho São Jorge.
O Turismo em Moçambique colónia ficava pela Gorongosa e por umas coutadas de caças, já que nestas últimas ainda não era politicamente errado matar a bicharada. Ou alguém ouvia falar muito mais do que isso no que se refere ao turismo de "importação"? O resto ficava pelo turismo interno e em cima de dicas de amigos, da propaganda de boca a boca, sem investimentos ou grandes incentivos do Estado.
O Grande Hotel foi sim uma megalomania "colonialista", sem avaliação da própria incompetência, - incompetência ou falta de interesse planeado -, no ramo turístico (não hoteleiro em si) onde o Hotel Polana de LM escapou por estar na capital da província onde tudo acontecia...o pouco que acontecia, convenhamos.
Imagem: A entrada do mercado da Beira (foto actual e copiada daqui)
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