O livro de Margarida Calafate Ribeiro (*) sobre a presença feminina na guerra colonial é um contributo de recolha memorialista sobre a experiência traumática dos treze anos em que a juventude portuguesa foi envolvida na aventura do desespero ocupacionista em África vista do lado de várias mulheres (poucas) que acompanharam maridos nas missões militares. Mas, por outro lado, implica sérios riscos de desfocagem quanto à realidade vivida pelos militares no terreno de guerra e pela maioria das mulheres a eles ligadas.
Não só foi reduzidíssimo o número de mulheres que acompanharam militares a intervirem no teatro de guerra, como a maioria das que para lá foram acompanharam oficialidade de baixa e média patente e de carreira e ficaram confinadas em cidades ou localidades afastadas das zonas de maior intensidade nos confrontos com os guerrilheiros. E mesmo quanto à visão de África, tendo a maioria das depoentes estado nas maiores cidades das colónias e ocupadas profissionalmente no ensino secundário ou no funcionalismo público, encravadas no seio das camadas dominadoras, a visão de África recolhida é a obtida pela vivência urbana e filtrada pelos olhos dos colonos e dos militares profissionais. Assim, como testemunho sobre África e a guerra colonial, o valor dos depoimentos não ultrapassa a irrelevância e a distorção do olhar eurocentrista (incluindo nos casos em que se tratou de mulheres politizadas e mesmo com posições anticoloniais).
Dois outros aspectos ainda somam insignificância testemunhal à recolha de Margarida Calafate Ribeiro, transformando o livro num potencial indutor de visões distorcidas:
- a sensibilidade feminina da condição de esposas de guerreiros (exacerbada no sentido de que misturavam o receio pela sorte dos maridos e estavam em situação de “lua-de-mel”) mais a sensibilidade maternal pois a maioria foi para lá com filhos pequenos ou lá teve os seus primeiros partos;
- o facto de todas as entrevistadas terem conservado o anonimato não abona quanto à responsabilização pela autenticidade dos depoimentos e quanto às posições expressas.
Em termos históricos, o livro é não só discutível por ser fonte de irradiação de uma visão parcialista e desfocada da guerra como induz estereótipos sobre ela (os dos ecos nas mulheres que por ela passaram na retaguarda e subjugadas ao permanente temor quanto à sorte dos seus maridos guerreiros). Se, em todo o livro, África nunca aparece e a guerra só esparsamente aflora em erupções anedóticas e secundárias, muita presunção encheu a cabeça da autora para chegar ao atrevimento de lhe chamar “África no feminino”. África é muito mais que aquilo (por vezes, o contrário daquilo) que as entrevistadas viram e perceberam, a guerra no feminino, no lado português (e o outro?), foi esmagadoramente a sofrida pelos muitos milhares de mulheres, irmãs e filhas dos soldados e milicianos que, na metrópole, ficaram na espera inquieta pelo regresso dos seus. E como é possível que a autora não se tenha dado conta do desaforo de, sem o depoimento de uma única mulher africana, intitular o livro como o fez? Um pouco de modéstia e de respeito para com o enquadramento histórico não ficavam mal à académica que decerto é senhora com outras competências e outros saberes, nomeadamente como literata. Se assim fizesse, estou certo que as centenas de milhar dos que sofreram a guerra no corpo e na alma, de um e outro lado da contenda, lhe agradeceriam o respeito para com as chagas que arrastam na memória. E o respeito vale mais que um livro.
(*) – “África no feminino”, Margarida Calafate Ribeiro, Edições Afrontamento.
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