Também a guerra tem as suas burocracias. E, como qualquer burocracia, se não domada pelo sentido do humano, tende a tomar galopes soltos mesmo sem sinais humanos sentados na sela. Onde facilmente as vidas se perdem, ou se gastam, como é o caso das guerras, a “burocracia da guerra” pode cometer o mais caricato erro burocrático: trocar vivos por mortos, ou vice-versa.
Neste blogue, reconstitui-se uma odisseia burocrática que começou na guerra colonial na Guiné e se espraiou no meio da papelada, esmerando-se em caprichos, com que os militares portugueses registam os que, da guerra, saíram vivos e mortos. Mostrando-se difícil que alguém dado como morto e enterrado, afinal estando vivo, recupere a cidadania da sua vitalidade. [post 1, post 2, post 3]
Resumindo a história do ainda vivo cidadão António da Silva Batista, antigo soldado do Exército Colonial Português:
- Em 17 de Abril de 1972, em Quifaro (Guiné), uma emboscada montada pelo PAIGC provoca um número elevado de vítimas mortais: 11 militares portugueses, cinco “milícias” africanos e vários civis que eram transportados na coluna militar. O soldado Batista escapa com vida e é aprisionado pelos guerrilheiros do PAIGC, sendo levado por eles para a Guiné-Conacry. Através da Cruz Vermelha, o soldado Batista escreve várias cartas à família que nunca chegam ao seu destino.
- O soldado Batista é dado como morto pela burocracia militar portuguesa, um outro cadáver faz-lhe de corpo seu, é passada competente certidão de óbito, os restos mortais substitutos são entregues à família, que procede ao respectivo funeral, ficando com campa no cemitério da sua terra natal que passa a ser cuidada e transformada em culto de saudade pela família.
- Com o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau, o PAIGC liberta o soldado Batista, entregando-o ao exército português. Em Setembro de 1974, passados 27 meses sobre a data da sua captura pelo PAIGC, volta a casa e à família. Visita a “sua campa” no cemitério (foto na imagem, publicada em 1974 no “Jornal de Notícias”) onde lê na lápide que lhe era dedicada “Em memória de António da Silva Batista. Falecido em combate na província da Guiné em 17-4-1972" e deposita uma coroa de flores sobre o corpo que lhe fizera as vezes.
- O ex-soldado Batista, cujo único documento de identidade era a sua certidão de óbito, vê-se em palpos de aranha para recuperar a sua condição de cidadão vivo. Se o Exército o dera como morto em combate, com certidão de óbito devidamente emitida, como podia passar a vivo e contado o tempo de ausência como prisioneiro? A burocracia reage como é timbre da burocracia. O ex-soldado Batista é reintegrado no rol dos vivos mas ainda hoje, continuando vivo, não conseguiu que a sua permanência no campo de prisioneiros do PAIGC lhe conste, na sua caderneta, como tendo sido em serviço militar.
A burocracia não permite que um vivo tenha estado vivo enquanto os papéis, os sagrados papéis da burocracia, assinalam que o vivo estava morto. Quando muito terá estado vivo mas, nos papéis, continua morto, ou pelo menos ausente em parte incerta. E se o ex-soldado Batista quisesse documentos conformes, respeitasse o papel da certidão de óbito e, em vez de andar a atrapalhar a burocracia, aceitasse que estava morto. Nem o Simplex resolve tão intrincado desrespeito à santa burocracia?
Imagem: Foto de Alvaro Basto sobre o “JN” que relatava o regresso do morto-vivo.
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