Não há hipótese de uma arrumação da memória colectiva sem o concurso dos especialistas que se dedicam à sua recolha, registo, sistematização e percepção projectiva. Sem eles, a forma como ligamos passado, presente e futuro, é uma dança de mosquitos à volta de uma lanterna. Eles dão-nos as bengalas com que, a par dos poetas, podemos encontrar chão para assentar os pés e perceber onde bebem as nossas raízes e por onde os nossos ramos se podem estender. Mas têm, também, uma terrível capacidade de manipulação. Porque, confiando neles, alguns podem aproveitar esse poder (e que imenso poder é o poder sobre a memória) para nos taparem um olho.
Uma investigadora cheia de pergaminhos editoriais, Margarida Calafate Ribeiro (*), escreve assim sobre o século XX:
“O imaginário histórico, político e cultural do Ocidente está dominado por um legado de violência e conflito. Só no século XX, assistimos a duas Guerras Mundiais, ao Holocausto, à Guerra Civil de Espanha, à Guerra do Vietname, às pouco narradas Guerras Coloniais europeias no Sul, seja na Ásia, seja em África, e à mais recente Guerra na ex-Jugoslávia. Guerras, massacres, genocídios, deportações, violações, violências.” (**)
Repare-se como a investigadora referida sintetiza as mais marcantes tragédias do século XX: as duas guerras mundiais, o Holocausto, a guerra civil de Espanha, a guerra do Vietname, as guerras coloniais, a guerra na ex-Jugoslávia. E nem uma referência, apenas uma, aos milhões de vítimas do comunismo integradas no genocídio social das lutas de classes e das suas degenerescências patológicas, bem como pelas purgas internas. Um olho de síntese histórica de Margarida Calafate Ribeiro não captou os milhões de camponeses ucranianos vítimas da fome provocada na luta contra os “kulaks”, as centenas de milhar de liquidados em Lubianka, os caídos no massacre de Katin, os milhões que se arrastaram no Gulag com muitos corpos despidos de alma que lá deixaram ou de lá trouxeram os ossos, os milhões de vítimas de Mao, os tantos milhões de cadáveres empilhados por Pol Pot. E o outro olho de síntese deve ter uma lente para que continuemos a olhar, apenas, através dos filtros selectivos das desgraças politicamente consagradas em que a "ilusão comunista" não é beliscada. Não desvenda, não ajuda a desvendar, estereotipa, dando-nos uma bengala de papel.
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(*) - Margarida Calafate Ribeiro, com uma eclética carreira académica em Literatura, é investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
(**) Da introdução de “África no Feminino”, Margarida Calafate Ribeiro, Ed. Afrontamento.
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