O último livro (*) de Zita Seabra tem várias imprecisões (**) mas julgo que nenhuma das até agora evidenciadas, apesar de demonstrar falta de trabalho atento da autora relativamente ao rigor das referências factuais e pessoais e condenável do ponto de vista da ética da escrita, é de natureza substantiva suficiente para destruir o valor (discutível, mesmo polémico) do seu testemunho.
Provavelmente, a mais desagradável e reprovável “invenção” do livro de Zita Seabra tem a ver com ter metido Raimundo Narciso, em fantasiosos trabalhos de montagem de sistema de escuta na sua casa que este já desmentiu e terá mesmo obtido da autora a garantia de uma próxima correcção.
Mas, obviamente, o levantamento em escarcéu dos lapsos do livro de Zita Seabra, empolando-os e dando-lhes relevo maior relativamente ao essencial do testemunho, serve ás mil maravilhas para, passando ao lado dos factos relevantes, desacreditar a autora, desacreditando o livro e desacreditar sobretudo a evidência da natureza estalinista intrínseca ao PCP, de que Zita, ela mesmo, foi estilo feita pessoa (mas que tem a coragem de assumir essa parte do seu passado).
Uma das denúncias mais apressadas dos “erros de Zita” foi feita aqui. Mas onde se mete água (isto é, grita “erro!” onde Zita acertou) logo à cabeça:
“A Zita Seabra fez um livro descuidado e mal editado. Nas páginas do “Foi Assim” descobrimos, por exemplo, que Amílcar Cabral era guineense (pág. 163) (…)”
Ora Amílcar Cabral era mesmo guineense. Nascido em Bafatá (Guiné) de mãe guineense e pai caboverdiano, Amilcar (mestiço escuro) era guineense, como, aliás, sempre se assumiu e disso se orgulhava (só conheceu Cabo Verde aos doze anos quando foi frequentar o liceu em São Vicente). Nas disputas racistas e tribalistas havidas no seio do PAIGC (e que permitiram à PIDE infiltrar os seus assassinos e a URSS urdir as suas intrigas paralelas), Amílcar “apanhava” de guineenses “puros” por ser mestiço e acusado de apoiar o domínios dos quadros caboverdianos, como “apanhava”, não menos, de caboverdianos que acusavam Amílcar de, sendo guineense, apoiar os combatentes desta proveniência. Muitos quadros caboverdianos do PAIGC foram, durante cursos de formação militar na URSS (nomeadamente a equipa que foi lá para se formar como pilotos de MIGs e quando regressou, por ainda não haver condições para que o PAIGC tivesse força aérea, foi operar com os mísseis terra-ar que neutralizaram a aviação colonial, acelerando o desfecho da guerra), foram doutrinados pelos soviéticos no sentimento anti-Amílcar, a quem acusavam de ser um defensor exagerado dos guineenses e por o ser. Isto tinha a ver com os interesses da URSS que do ponto de vista geoestratégico nos seus interesses de superpotência, estava muito mais interessada em ter um “porta-aviões” no meio do Atlântico Sul (Cabo Verde) que a costa da Guiné-Bissau (onde Sekou Touré, na Guiné-Conacry, já lhe fornecia essa posição). Por outro lado, ao contrário do que muitos julgam, Amilcar Cabral era mais “independente” do que a “fidelidade soviética” exigia, e não era bem vista a enorme habilidade diplomática com que Amílcar se relacionava no mundo (o socialista e o ocidental), particularmente com os países nórdicos sociais-democratas (com destaque para Olof Palme, Suécia) e que apoiavam o PAIGC nos domínios dos fundos, cobertura diplomática, apoio médico e educacional. [Como também foi significativo que a invasão da Guiné-Conacry, em 1970, para decapitar Sekou Touré e Amílcar, aniquilar o PAIGC e mudar o regime da Guiné-Conacry, liderada por Alpoim Calvão e com a autorização de Spínola, tenha usado um bem sortido lote de kalashnikov novinhas e do último modelo, compradas pelo traficante de armas Zoio na URSS, por encomenda da PIDE]. Assim, se a PIDE atingiu Amílcar infiltrando gente guineense que o odiava por ser “caboverdiano” (o que era falso), a URSS acirrava contra Amilcar o ódio dos caboverdianos por este ser, como era, guineense (na esperança que, numa futura e previsível cisão, os caboverdianos, agradecidos, facilitassem Cabo Verde como base de implantação da URSS no Atlântico Sul).
Como se comprova, os erros não escolhem autores. E a pressa da denúncia desvalorativa pode ter efeitos de “boomerang” sobre alguns denunciantes com passo de corrida para "malhar na Zita".
(*)“Foi assim”, Zita Seabra, Aletheia Editores
(**) – Por exemplo, confunde o nome do sogro de Joaquim Pina Moura, Guilherme da Costa Carvalho (foi um destacado dirigente do PCP), com o de outro dirigente do mesmo partido, Rogério Carvalho.
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