Confesso que já li o último livro de Zita Seabra (*).
[Sempre antipatizei profundamente com a senhora e não encontro forma de lhe achar a mínima graça. Pela sua vaidade obsessivamente exibicionista, os seus traços vincados de propensão autoritária e os seus modos teatrais de captar a forma de representação além do conteúdo. A minha aversão por Zita Seabra vem de longe e contempla integralmente todo o tempo em que militámos no mesmo partido, embora com ela tenha tropeçado fugazmente e uma única vez de má memória (**). Aliás, parte da minha reserva contida relativamente à direcção do PCP, enquanto fui militante comunista com “crença”, teve a ver com o efeito da ascensão fulgurante de Zita Seabra até ao Olimpo da Comissão Política e que tomei como péssimo indício dos critérios adoptados nas figuras escolhidas para as responsabilidades maiores. Quando a dissidência de Zita Seabra deu escândalo, isso nada me perturbou, pois a minha ruptura com o PCP já estava num ponto em que achava que Cunhal, a direcção do PCP e Zita Seabra estavam todos bem uns para os outros.]
O livro tem, na sua parte dedicada ao controlo do PCP sobre a actividade estudantil (na fase terminal do fascismo e na época revolucionária), um interesse testemunhal não só importante como inédito e incontornável. Escasseando as referências históricas e os testemunhos de protagonistas sobre a forma, e os respectivos actores, como o aparelho clandestino do PCP enquadrava a oposição estudantil e a militância comunista que combatia o fascismo nas universidades e liceus e estando por fazer a história da UEC (União dos Estudantes Comunistas), enquanto existiu como braço estudantil do PCP, organização que teve grande importância quer na agitação na fase terminal do fascismo e na afirmação revolucionária, também no combate violento às organizações rivais da esquerda radical, este testemunho proporcionado por quem chefiou a UEC desde o seu nascimento até à sua extinção é de valor inestimável. E o testemunho de Zita Seabra é prestado com intenção de rigor e a distância crítica proporcionada pelo desencanto, valendo o livro.
Igualmente interessante, até pela sua atipicidade, é o percurso pessoal e o processo de transformação de uma liceal muito jovem (ainda em fase de adolescência) média burguesa portuense a tornar-se mulher adulta na clandestinidade comunista e a ascender no aparelho. E como, em situações tão excepcionais, se processa o endurecimento (catalizado pela precocidade) de uma “revolucionária profissional”. E, neste aspecto, o testemunho de Zita Seabra é revelador de enorme sinceridade na medida em que assume o autoritarismo estalinista extremado com que se fazia e se faz carreira no PCP.
Paradoxalmente, a parte sombria do livro é a passagem à dissidência na fase em que tinha consumado uma ascensão fulgurante até ao máximo escalão do aparelho partidário (conquistando gabinete frente ao de Cunhal no célebre “6º andar” da Soeiro Pereira Gomes, o que era uma espécie de paralelo com um lugar na tribuna do Kremlin em dia de parada soviética na Praça Vermelha). Zita Seabra limita-se a dizer que se “sentia mal” nas reuniões da Comissão Política, não empatizava com os seus camaradas de cúpula e não gostava daquele tipo de trabalho. As referências à doença e a uma ligação sentimental que foram adicionadas deixam perceber que o essencial da ruptura foi mais da ordem da necessidade de libertação emocional e social da vida política que propriamente divergências políticas e ideológicas. Mas então, se foi este o caso, porquê o desgaste doloroso do confronto violento que se seguiu, esse desejo de romper com dor e alarido, essa forma dramática de beber e fazer beber o cálice do fel, de que se revestiu o afastamento do partido? Porque razões Zita Seabra quis cobrar ao PCP, e o PCP quis cobrar a Zita Seabra, um ruptura transformada em drama público e com violência? Entende-se que o PCP estivesse interessado que uma Zita Seabra fragilizada e desorientada lhe desse azo a um caso exemplar, forma de aviso à dissidência potencial, de brutalidade e impiedade política com que se tratavam os descarrilados que se atrevessem a levantar a luva, mas entende-se mal que, percebendo-o, dispondo-se a mudar de vida e de rumo, Zita Seabra tenha levado até ao limite o exercício sado-masoquista da sua expulsão do templo. A megalomania de Zita Seabra não permitia uma ruptura soft e sem o escândalo da grande sonoridade social e política?
A parte menos interessante do livro é o capítulo final dedicado à percepção da sociedade soviética na fase terminal da “perestroika” com Zita Seabra no papel de jornalista e já desligada do PCP. È absolutamente prosélito e pouco convincente este retorno à URSS para ver e perceber o que antes, nos mesmos locais, não tinha visto nem entendido.
(*) “Foi assim”, Zita Seabra, Aletheia Editores
(**) – A única vez que tive Zita Seabra por perto foi nas eleições para a Assembleia Constituinte, em 1975, quando me coube presidir a uma mesa de uma “sessão de esclarecimento” do PCP numa sociedade recreativa no concelho de Cascais. Os oradores escalados foram o actor José Viana, o escritor Manuel da Fonseca e Zita Seabra. José Viana, com um fato velho e gasto, cheio de caspa nos ombros, lá disse umas larachas. Manuel da Fonseca, perdido de bêbado (estado em que ali chegou), não estava em condições sequer de tugir e saiu como entrou, talvez sem depois se lembrar onde tinha estado. Zita Seabra fez a festa toda, sobranceira e arrogante, exemplo de não camarada, repreendendo-me (e obrigando-me a corrigir a falha) por a ter apresentado sem mencionar no seu currículo o número de anos que tinha estado na clandestinidade.
OS MEUS BLOGS ANTERIORES:
Bota Acima (no blogger.br) (Setembro 2003 / Fevereiro 2004) - já web-apagado pelo servidor.
Bota Acima (Fevereiro 2004 a Novembro 2004)
Água Lisa 1 (Setembro 2004 a Fevereiro 2005)
Água Lisa 2 (Fevereiro 2005 a Junho 2005)
Água Lisa 3 (Junho 2005 a Dezembro 2005)
Água Lisa 4 (Outubro 2005 a Dezembro 2005)
Água Lisa 5 (Dezembro 2005 a Março 2006)