Segunda-feira, 9 de Julho de 2007

O LIVRO QUE NÃO SE DEVE LER (1)

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Pela amostra já obtida numa volta pela blogosfera, confirmo o que previa: o último livro de Zita Seabra (*) vai ser muito mais falado (detestado) que lido, quanto mais discutido, suscitando uma onda de convergência de repugnâncias várias. E o chicote do ostracismo estalou logo que a autora se atreveu a mostrar a “capa do livro” através de breves transcrições na imprensa e numa entrevista televisiva. O nojo ficou logo fortemente vincado com juras de dispensa de leitura.

 

A autora, só por si, é fonte de enorme alergia pelos seus deméritos públicos e chocantes (em que avulta o cabotinismo mais grotesco e insuportável) e pela trajectória que a levou do PCP (da clandestinidade, da revolução e da pós-revolução) ao PSD e a patéticas defesas de causas (caso do “Não” ao referendo sobre a IVG), sendo um dos mais fortes símbolos consolidados da desqualificação política com o senão acrescentado de insistir em permanecer na ribalta. E com a desfaçatez do exibicionismo persistente.

 

Como se Zita Seabra, ela mesma, não chegasse, ela insiste em desnudar duas realidades cujos tabus fazem parte da religiosidade que a institucionalidade político-partidária consagra entre os mitos sagrados e intocáveis da cultura política dominante – o PCP e Álvaro Cunhal. É que, não falando do ódio sacro dos comunistas para com a galeria dos seus “traidores”, mesmo nos quadrantes adversários, incluindo os anticomunistas, o politicamente correcto estabelecido é que se respeite e admire Cunhal e se arranhe o PCP com parcimónia (como antidemocrático e estalinista, ponto final). Pela relevância histórica no século XX português que o PCP e Cunhal tiveram (ambos acumulando realidade e mito) - o que dá uma ideia da miséria portuguesa relativa num dos períodos mais fecundos, por más e boas razões, da história europeia e mundial -, há um “respeito mínimo” que a “boa educação” e as “tradições” exigem para que a memória política portuguesa não encontre, olhando para trás, para o passado vivido pela maioria dos portugueses vivos, a par da longa escuridão salazarista e de uma revolução fracassada, o contraponto à realidade fascista num candidato a ditador alternativo (ainda mais cruel, pérfido e cínico) e uma máquina de triturar a sociedade (com maior discriminação e iniquidade e mais presos políticos que os da época fascista). Seria insuportável para a auto-imagem dos portugueses. Com Zita Seabra a fazê-lo, tudo piora. Então, por higienismo histórico e político retroactivo, a solução está em desfazer Zita Seabra e já que a senhora não pode ser “apagada”, como Iejov fazia com os retratos onde aparecia Trotski, negue-se o livro, a sua memória e o desaforo de nos incomodar com ela (**).

 

Esta forma de liquidar testemunhos, não os integrando na construção histórica, casa bem com uma outra aversão tipicamente portuguesa -  a de discutir ideias e projectos, num universo profundamente maniqueísta em que tudo ou é branco ou é preto. O mais fácil e recorrente, em casos como o dos hábitos culturais portugueses, é puxar da pistola ou do ramo de flores, conforme quem usa da palavra, antes de a usar. Tal como a Censura, na ditadura, antes fazia por nós e para nós, o sentido prévio do interdito perdura, agora com indexes voluntariamente assumidos e colectivamente construídos em interdições por nojo para que não percamos a arca dos tabus e dos mitos.

 

José Manuel Correia, num post acutilante, remando contra a maré do conformismo em gavetas de amores e ódios, escalpeliza bem o fenómeno da rejeição prévia ao livro de Zita Seabra e em que termina com esta frase lapidar: “Foi assim, mas há sempre alguém que não deseja acreditar”. No caso, neste “não desejar acreditar”, o PCP e a imagem de Cunhal têm as vidas facilitadas para não serem beliscados sem necessidade de rebater uma vírgula sequer numa linha gasta no “Avante”.  Do arco de toda a esquerda, incluindo a classificada pelo PCP como a “falsa esquerda” ou a “esquerda de direita”, saltarão repulsas condenatórias suficientes para alimentar o nojo que neutralize a tentação pelo conhecimento e digestão do conteúdo do livro. É assim.

 

(*) “Foi assim”, Zita Seabra, Aletheia Editores

 

(**) – O fenómeno da rejeição pelo livro de Zita Seabra é “copy paste” do ocorrido quando Cândida Ventura lançou, no início da década de 80 (antes da “perestroika”), o seu livro “O Socialismo que eu vivi” (Ed. O Jornal) e que foi eficazmente ostracizado apesar de ser um dos mais sustentados libelos-testemunhos sobre o “socialismo real” e o PCP e a sua dependência soviética. Curiosamente, Zita Seabra não refere Cândida Ventura, a sua dissidência e o seu livro, o que confirma que, na altura, ainda não tinha chegado “a sua hora”.

Publicado por João Tunes às 18:17
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6 comentários:
De cristina a 9 de Julho de 2007
repugnância???
o livro, entendo, é feito de muita luta interior e com certeza muita mágoa. a coragem demonstrada está muito além dos outros, é em relação a ela própria, àquilo em que acreditava.
De João Tunes a 9 de Julho de 2007
Cunhal terá dito parecido ao CC do PCP quando queriam matar e esfolar a Zita, chamando a atenção que poucos ali teriam a mesma coragem de Zita em enfrentar sózinha o CC. Claro que foi um golpe retórico de líder que tem os cordelinhos todos na mão. Mas a falta de coragem será a última pedra a atirar a Zita. Cristina, li e gostei do seu post sobre o mesmo tema. Abraço.
De Rui Bebiano a 9 de Julho de 2007
Lá iremos, lá iremos, caro João Tunes. Para já ainda estou a ler o livro (mais ou menos ao ritmo diário de uma novela da TVI), mas já deu para perceber que ele «rompe» bem menos com o passado do que era suposto «romper». Se calhar não será de surpreender...
De JMC a 10 de Julho de 2007
Agradeço a amável referência.
Contribuiu para dar um ar cosmopolita àquele beco mal afamado.
O discurso não é comparável à prosa fluida, sagaz e inteligente que por aqui escorre e faz ser um prazer retornar. Mas faz-se o que se pode.
De RN a 15 de Julho de 2007
Só agora comecei a ler o livro de ZS após regresso de uma semana de férias. Comecei pela referência (errada) que a mim faz e para a qual me tinham chamado a atenção. Ela prometeu-me rectificar o engano. Está aqui: http://agrandedissidencia.blogspot.com/2007/07/foi-assim-com-zita-seabra.html
De Manuel Rialto a 19 de Julho de 2007


A longa noite fascista ? não dei por isso pelo menos nos últimos 20 anos, que vivi em plena claridade até 24 de Abril de 1974. E era tal a clareza dos tempos que encadeados pela luz fomos pelo 25 adentro até hoje ....

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