Pela amostra já obtida numa volta pela blogosfera, confirmo o que previa: o último livro de Zita Seabra (*) vai ser muito mais falado (detestado) que lido, quanto mais discutido, suscitando uma onda de convergência de repugnâncias várias. E o chicote do ostracismo estalou logo que a autora se atreveu a mostrar a “capa do livro” através de breves transcrições na imprensa e numa entrevista televisiva. O nojo ficou logo fortemente vincado com juras de dispensa de leitura.
A autora, só por si, é fonte de enorme alergia pelos seus deméritos públicos e chocantes (em que avulta o cabotinismo mais grotesco e insuportável) e pela trajectória que a levou do PCP (da clandestinidade, da revolução e da pós-revolução) ao PSD e a patéticas defesas de causas (caso do “Não” ao referendo sobre a IVG), sendo um dos mais fortes símbolos consolidados da desqualificação política com o senão acrescentado de insistir em permanecer na ribalta. E com a desfaçatez do exibicionismo persistente.
Como se Zita Seabra, ela mesma, não chegasse, ela insiste em desnudar duas realidades cujos tabus fazem parte da religiosidade que a institucionalidade político-partidária consagra entre os mitos sagrados e intocáveis da cultura política dominante – o PCP e Álvaro Cunhal. É que, não falando do ódio sacro dos comunistas para com a galeria dos seus “traidores”, mesmo nos quadrantes adversários, incluindo os anticomunistas, o politicamente correcto estabelecido é que se respeite e admire Cunhal e se arranhe o PCP com parcimónia (como antidemocrático e estalinista, ponto final). Pela relevância histórica no século XX português que o PCP e Cunhal tiveram (ambos acumulando realidade e mito) - o que dá uma ideia da miséria portuguesa relativa num dos períodos mais fecundos, por más e boas razões, da história europeia e mundial -, há um “respeito mínimo” que a “boa educação” e as “tradições” exigem para que a memória política portuguesa não encontre, olhando para trás, para o passado vivido pela maioria dos portugueses vivos, a par da longa escuridão salazarista e de uma revolução fracassada, o contraponto à realidade fascista num candidato a ditador alternativo (ainda mais cruel, pérfido e cínico) e uma máquina de triturar a sociedade (com maior discriminação e iniquidade e mais presos políticos que os da época fascista). Seria insuportável para a auto-imagem dos portugueses. Com Zita Seabra a fazê-lo, tudo piora. Então, por higienismo histórico e político retroactivo, a solução está em desfazer Zita Seabra e já que a senhora não pode ser “apagada”, como Iejov fazia com os retratos onde aparecia Trotski, negue-se o livro, a sua memória e o desaforo de nos incomodar com ela (**).
Esta forma de liquidar testemunhos, não os integrando na construção histórica, casa bem com uma outra aversão tipicamente portuguesa - a de discutir ideias e projectos, num universo profundamente maniqueísta em que tudo ou é branco ou é preto. O mais fácil e recorrente, em casos como o dos hábitos culturais portugueses, é puxar da pistola ou do ramo de flores, conforme quem usa da palavra, antes de a usar. Tal como a Censura, na ditadura, antes fazia por nós e para nós, o sentido prévio do interdito perdura, agora com indexes voluntariamente assumidos e colectivamente construídos em interdições por nojo para que não percamos a arca dos tabus e dos mitos.
José Manuel Correia, num post acutilante, remando contra a maré do conformismo em gavetas de amores e ódios, escalpeliza bem o fenómeno da rejeição prévia ao livro de Zita Seabra e em que termina com esta frase lapidar: “Foi assim, mas há sempre alguém que não deseja acreditar”. No caso, neste “não desejar acreditar”, o PCP e a imagem de Cunhal têm as vidas facilitadas para não serem beliscados sem necessidade de rebater uma vírgula sequer numa linha gasta no “Avante”. Do arco de toda a esquerda, incluindo a classificada pelo PCP como a “falsa esquerda” ou a “esquerda de direita”, saltarão repulsas condenatórias suficientes para alimentar o nojo que neutralize a tentação pelo conhecimento e digestão do conteúdo do livro. É assim.
(*) “Foi assim”, Zita Seabra, Aletheia Editores
(**) – O fenómeno da rejeição pelo livro de Zita Seabra é “copy paste” do ocorrido quando Cândida Ventura lançou, no início da década de 80 (antes da “perestroika”), o seu livro “O Socialismo que eu vivi” (Ed. O Jornal) e que foi eficazmente ostracizado apesar de ser um dos mais sustentados libelos-testemunhos sobre o “socialismo real” e o PCP e a sua dependência soviética. Curiosamente, Zita Seabra não refere Cândida Ventura, a sua dissidência e o seu livro, o que confirma que, na altura, ainda não tinha chegado “a sua hora”.
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