Recomendo a leitura do texto integral da famosa carta do então Bispo do Porto (António Ferreira Gomes), em Julho de 1958, dirigida a Salazar, aqui divulgada pela Joana Lopes.
Por um lado, a carta é um dos documentos que deram mais brado na altura, em plena crise do regime provocada pelo fenómeno de massas de repulsa emocional colectiva ao fascismo português, de cariz messiânico, despoletado pela campanha de Humberto Delgado. Carta esta que foi marcadamente dramatizada pela resposta implacável que Salazar lhe deu – o exílio forçado de um dos mais poderosos bispos católicos portugueses. E que serviu para Salazar, um fervoroso católico, demonstrar que da Igreja Católica esperava uma serventia acólita de sustentação incondicional e obscurantista do regime (como o que Cerejeira praticava) e não luzes, mesmo que trémulas, de abertura às loucuras de mudanças liberalizantes, inclusive a da fachada de uma ala democrata-cristã a funcionar como regeneradora do católico-fascismo à portuguesa. Mas, lida à distância, a carta do então Bispo do Porto ajuda a desmontar o mito da sua associação a um acto de grande rebeldia e enorme coragem como se de uma afronta a Salazar se tratasse. Mito este que viveu e permaneceu mais da emoção despoletada pelas suas consequências (o exílio do hierarca católico) que pelo seu conteúdo - semi-servil e contemporizador, em que o grau de cumplicidade do texto suplanta a afoiteza da indicação de aberturas. O que Marcello Caetano percebeu bem quando, depois e sem que o regime abalasse por isso, mandou o bispo regressar.
Para relativização da dimensão e contexto, compare-se este acto de ousadia do Bispo do Porto com as atitudes frontais que, em Moçambique e em épocas distintas, tomaram os seus colegas bispos da Beira e de Nampula, igualmente perseguidos pelo regime. Estes, por personalidade e pelo choque da brutalidade da realidade colonial moçambicana, produziram documentos e tomaram atitudes de desafio que, em comparação com a carta de António Ferreira Gomes, a usar-se a mesma bitola de mitificação, teriam de ser considerados de confronto épico ao fascismo colonialista. E, no entanto, na hagiografia da resistência católica, enquanto a “carta do Bispo do Porto” quase parece pedir meças de simbolismo à fuga de Cunhal de Peniche na história da resistência comunista, a luta valente e persistente dos bispos de Moçambique continua envolta na penumbra da vaga lembrança. Mais uma vez, o eurocentrismo a fazer das suas, até na mitologia da resistência ao fascismo.
Divulgação oportuníssima esta da Joana Lopes. Valendo mais como prova da intolerância radical e cega de Salazar que da clarividência das propostas liberalizadoras do célebre Bispo do Porto.
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