O culto mitológico e necrófilo em constante disseminação no PCP e envolvendo Álvaro Cunhal é, em larga medida, uma importante, quiçá necessária, compensação para a pobreza ideológica que grassa naquele partido, incapaz de entender e dar respostas aos desafios da etapa da globalização acelerada, como uma caução para o acantonamento defensivo do partido face às transformações sociais, culturais e tecnológicas e cuja afirmação se reduz ao tacticismo assente nas bolsas dos ressentimentos sociais face às mudanças e numa prática frenética de sindicalismo partidário usando a CGTP como joguete instrumental. O culto por Cunhal, nunca autorizado na sua vida (e Cunhal nunca permitiu que expressamente lhe fosse prestado culto para que ele adquirisse a sua potência mais elevada, a obtida pela sublimação e pela interiorização do recalcamento da idolatria), hoje à solta no PCP, funciona também como uma sombra protectora para as evidentes debilidades políticas e ideológicas da sua direcção e do seu líder nominal. Perdido Cunhal, o PCP impede e adia o seu luto político, procurando rentabilizar a marca do prestígio deixado em amplos sectores da sociedade portuguesa, hipotecando, assim, a capacidade do PCP responder aos (novos) desafios da era pós-Cunhal e da pós-revolução portuguesa, no quadro da fase pós-soviética, estes tempos de vida democrática assente na legitimidade eleitoral num Portugal radicalmente diferente daquele em que interveio o líder histórico dos comunistas portugueses que pretendeu moldar e que se saldou por uma sua derrota política clamorosa e absoluta.
Cunhal nunca foi um teórico do marxismo-leninismo. Não por falta de capacidade (capacidades intelectuais, culturais e políticas, tinha-as e muito) mas por impossibilidade. A obra de Karl Marx é praticamente tudo na teoria marxista. As achegas de Engels foram (maus) acabamentos parcelares. Lenine foi sobretudo um sistematizador do pragmatismo brutal da conquista e conservação do poder comunista, nas condições particulares da Rússia do início do século XX. Estaline, ao enformar o marxismo-leninismo na forma de cartilha, adaptada aos interesses conjunturais da URSS enquanto potência, liquidou-lhe a capacidade de elaboração teórica e fez regredir os próprios contributos e desafios teóricos de Marx ao patamar da escolástica de vulgata, naquilo que hoje se continua a designar como marxismo-leninismo e que nada é mais que uma colecção de mandamentos do bom partido e do bom partidário. Após o advento do estalinismo (sobretudo após a sua consolidação a partir de 1929), o movimento comunista internacional perdeu toda e qualquer capacidade teórica (o último arremedo de teorização criativa foi experimentado por Gramsci enfiado na prisão no início da década de 20). A teoria comunista transformou-se em versões revistas e aumentadas da cartilha de boas práticas sem admissão de colisão com a absoluta hegemonia e caução do PCUS. Foi isso que Cunhal fez, moldando o PCP entre a realidade percebida portuguesa e os mandamentos estalinistas quanto ao funcionamento partidário exemplar. Nada acrescentou ou inovou relativamente à cristalização do marxismo-leninismo. Nem o podia fazer. Se Cunhal estava inibido, por natureza partidária, de ser um pensador político, era um intelectual que pensava e pensava bem, além de ser um revolucionário experimentado e multifacetado. Dedicou-se, pois, àquilo que a prática comunista internacional permitia aos seus quadros dirigentes nacionais - a reformulação das tácticas, a vigilância ideológica e o aperfeiçoamento dos aparelhos. Esse é o legado da sua obra “teórica”.
Enquadrado no actual culto a Cunhal, as Edições Avante iniciaram a publicação das suas “obras completas” (quase) e de que foi editado o primeiro tomo. Mas obviamente que, além do seu valor em termos de posse fetichista para os militantes idólatras, a maioria dos militantes do PCP comprará os livros “do Álvaro” mas poucos se darão ao esforço de os ler. Pelo fraco nível cultural e diminutos hábitos de leitura e reflexão que caracteriza a maioria dos militantes do PCP e pela necessidade de, atendendo nomeadamente á diferença entre épocas, ser necessário descriptar politicamente muitos dos seus escritos. Prova de que assim é e como tal é entendido pela direcção do PCP, foi a necessidade de as mesmas Edições Avante terem agora lançado uma espécie de “gramática de Cunhal” (*) em que vários dos seus dirigentes explicam, sucinta e de modo acessível, simplificando o mestre, os principais significados do que Cunhal quis dizer quando escreveu o que escreveu, numa espécie de retalhos de resenhas para semi-analfabetos do marxismo-leninismo lusitano pensado por Cunhal. Como é normal, os vulgarizadores ficam aquém dos mestres inspiradores. Aqui, confirma-se.
(*) “5 Obras de Álvaro Cunhal”, vários, Edições Avante
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