Se a explicação do poder totalitário de Estaline se tem de encontrar na sua própria figura, em que a paranóia criminosa pessoal teve um papel instrumental e estratégico central, ele necessariamente, além de ter bebido na herança deixada por Lenine, correspondeu aos anseios de uma ampla base de apoio procurando a satisfação (por via perversa) de expectativas (desde o grande projecto de ambição de alcançar o cume da pirâmide da “nomenklatura” até ao interesse mais mesquinho de sobrevivência ou uma pequena, ou média, ascensão/afirmação social) de muitos actores secundários, terciários, etc, na URSS e espalhados pelo mundo. A ser assim, o “culto de Estaline” e o servilismo pró-soviético difundido tem de ser entendido no quadro histórico de uma ampla alienação política, ideológica e social com génese na utopia comunista e no marxismo-leninismo (a idealização reificada da praxis do primeiro poder proletário com sucesso sustentado, o saído da Revolução de Outubro, concebido e manipulado em forma de cartilha – com o “centralismo-democrático” como pedra de toque - pelo georgiano que, tendo começado como vulgar seminarista, acabou a dominar um império de meio mundo e a levar a URSS à categoria de superpotência). Alienação esta que, hoje, na Europa do nosso tempo, tem as suas maiores raízes sobreviventes num dos países europeus mais atrasados económica, social, laboral e culturalmente, vivendo um ciclo de orfandade nacional quanto a identidade e projecto (Portugal, PCP com 8% de votos em eleições livres, o que, após mais de 50 anos passados sobre a morte de Estaline e a denúncia dos seus crimes pelo XX Congresso do PCUS, em 1956, representa uma das fixações políticas em Estaline mais tardo-persistentes entre o quadro partidário europeu). Que, passado meio século sobre o desaparecimento e desmascaramento de Estaline, procede, com eco de condescendência social e política desde a esquerda até à direita, a uma rentável reprodução do “culto da personalidade” antes prestada ao “Pai dos Povos”, decalcando-a na veneração póstuma e necrófila de Álvaro Cunhal que esbate a evidência da mediocridade do seu actual e nominal dirigente máximo (um pigmeu político comparado com todos os anteriores líderes do PCP, incluindo no cotejo com o cinzento líder da transição pós-Cunhal, Carlos Carvalhas).
Um partido comunista periférico de um país europeu periférico, como foi o PCP, para mais banido durante décadas do movimento comunista internacional (por suspeita de infiltração policial), com sucessivas crises convulsivas de liderança e sujeito a uma feroz perseguição, desenvolveu duas vertentes, catalizadas pelo isolamento e atraso salazaristas: um forte espírito de seita com raízes populares profundas onde as explorações capitalista e feudo-agrária eram mais brutais; uma subsidariedade complexada, com essência de servilismo, perante o farol político da URSS e sem massa crítica para “contestar o pai”, lendo antes a ideologia nos sinais das suas pegadas. A partir da década de 60, Álvaro Cunhal, um visceral e heróico estalinista, um intelectual político de alto gabarito, corajoso e devotado, dotado de uma inteligência superior e com cultura multifacetada, autêntico príncipe maquiavélico, fugido da prisão e líder absoluto e incontestado do PCP, moldou o PCP na cristalização das suas duas componentes identitárias vindas do passado: autonomia para a estratégia nacional de consumo interno e serviço acrítico aos supremos interesses de uma potência estrangeira guia e tutora (URSS).
O PCP adorou Lenine enquanto este foi o líder supremo da Rússia bolchevique. O PCP adorou Estaline enquanto Estaline viveu, comandou e assassinou em massa (incluindo centenas de milhar de comunistas), chorando copiosamente a sua morte. O PCP inflectiu “à direita” no seu V Congresso, em 1957 (com Cunhal na prisão), um ano após o XX Congresso do PCUS que adoptou a “coexistência pacífica” e entronizou Kroutchov. Cunhal, finalmente mandatado como secretário-geral e exilado no Leste socialista, acompanhou, entusiasmado, o golpe vitorioso de Brejnev contra Kroutchov, cortejando a clique brejneviana até ao seu fim. Cunhal, depois, apoiou Andropov, Tchernenko e Gorbatchov na sua ascensão (supunha-o portador de uma panaceia leninista para os males da URSS). Só rompeu com Gorbatchov quando percebeu que a “perestroika” e a “gladnost” encaminhavam o império comunista para a implosão eminente. Na Checoslováquia, apoiou o estalinismo mitigado de Novotny, foi um entusiasta da “primavera de Praga” e amigo declarado de Dubcheck, foi um dos primeiros líderes comunistas a apoiar o esmagamento da experiência checoslovaca pelos tanques do Pacto de Varsóvia, sentindo-se em casa durante a “normalização” de Husak que implicou, além do mais, a expulsão do Partido Comunista da Checoslováquia de meio milhão de militantes comunistas checos e eslovacos. Na Polónia, foi apoiante fidelíssimo de Jaruzelski na imposição da lei marcial contra o sindicalismo polaco. Apoiou, sem vacilações, a invasão do Afeganistão pelo Exército Vermelho. E por aí fora, segundo o princípio de que da URSS só vinham raios solares que iluminavam o mundo. Foi, provavelmente, o português mais soviético (ou, se preferirem, o soviético que melhor conheceu Portugal e os portugueses, e o que aqui deixou marcas mais profundas). Com as suas hostes partidárias rendidas a obedecer-lhe cegamente. Deixou uma herança política e partidária de difícil gestão, desguarnecida da sua excepcional personalidade e da bússula soviética. Hoje, lendo-se o “Avante”, o velho internacionalismo proletário deu lugar a uma salada de aventureirismo cúmplice que mete ETA, bombistas islâmicos, tallibans, Chavez e Fidel. E o regresso esplendoroso, sem tibiezas, ao culto a Estaline, o velho pai recuperado, por via do mito, do túmulo da memória.
A comunidade judaica em Portugal, desde a sua expulsão pela Inquisição, há muito que não passa do patamar da insignificância. Mas o preconceito anti-judaico tem raízes fortes na cultura tradicional alimentado pela prolongada prédica católica do tempo do fascismo, só sendo um epifenómeno por falta de visibilidade dos “outros”. Na mitologia popular, “judiaria” é sinónimo de maldade especialmente perversa, “judas” é o traidor, “semítico” é sinónimo de avareza e agiotagem. Israel não é especialmente estimada. A inteligência de esquerda zurze, sem dó e com fraco contraditório, no sionismo, tomando contra Israel posições sistemáticas de repúdio e denúncia quando se verificam conflitos israelo-árabes, se necessário inclinando-se, em cumplicidade, para o apoio moderado mas selectivo pelos fanáticos islâmicos, seja o Irão, o Hezbollah ou o Hamas.
Quando Estaline meteu em marcha a sua campanha antisemita e de purga comunista (ver dois posts anteriores), na “conjura das batas brancas” na URSS com réplicas nos restantes países de regime comunista, o PCP apoiou, como sempre foi seu timbre no culto a Estaline e à URSS, mesmo quando das suas maiores monstruosidades criminosas. Veja-se, como exemplo, a posição oficial do PCP tomada no início de 1953, dois meses antes da morte de Estaline:
“O recente julgamento, em Praga, de 10 espiões e traidores ao serviço dos imperialistas norte-americanos constitui uma grande contribuição para a defesa da Paz e do Socialismo.”
“Nos seus planos bélicos, os imperialistas não contam somente com o rearmamento, a construção de bases e a preparação de grandes exércitos com vista a atacarem a União Soviética, as Democracias Populares e as forças democráticas de todo o Mundo. Nesses planos têm destacado lugar a espionagem e a provocação contra as forças da Paz e em especial os Partidos Comunistas e Operários, forças de vanguarda da luta dos povos pela Paz, a Democracia e o Socialismo.”
“Em relação aos países da Democracia Popular, em que os Partidos Comunistas e Operários estão no poder, ainda se torna mais encarniçada a acção contra eles e a História mostra-nos muitos exemplos dos infames meios a que os imperialistas têm lançado mão.”
“A própria história da grande União Soviética dá-nos importantes lições a esse respeito. Na sua política de domínio mundial, os imperialistas recorreram á sabotagem, á espionagem e ao assassinato dentro da União Soviética. Os seus agentes, acobertados no próprio Partido Comunista, foram descobertos, julgados e condenados em 1937 e 1938. Estes históricos julgamentos vibraram um golpe profundo nos planos imperialistas, contribuíram poderosamente para a defesa da União Soviética, cujo povo, unido e dirigido pelo heróico Partido Bolchevique, infligiu ao fascismo a grande derrota de 1945. Recentemente foram descobertos os crimes de 11 médicos judeus que, instigados pelos serventuários do imperialismo americano e do Estado de Israel, se dedicavam na União Soviética a crimes de assassinato contra os mais destacados dirigentes do Partido Comunista e do Estado, particularmente dos dirigentes das forças armadas, tendo assassinado Jdanov e o general Shderbokov. Estes infames crimes mostram bem os intentos criminosos dos imperialistas americanos e dos seus lacaios israelitas. “
(…)
“Os imperialistas têm procurado também arrancar a Checoslováquia do campo da Paz e do Socialismo. Em Fevereiro de 1948, o povo checoslovaco, dirigido pelo Partido Comunista, derrotou o golpe de Estado organizado pelas forças da reacção com apoio americano. Desde então o povo checoslovaco tomou conta definitiva dos seus destinos.”
“A descoberta há dois anos, do grupo de espiões encabeçado por Sling, Svermova e Clementis, e passado um ano, a descoberta do chefe de toda esta manobra de traição, Rudolf Slanski [nota: o então Secretário-geral do Partido Comunista da Checoslováquia], vibrou um pesado golpe ma reacção checoslovaca e nos seus patrões, os imperialistas americanos, que contavam com esses traidores e espiões para corroer a Checoslováquia arrancando-a ao campo da Paz.”
“O julgamento e a condenação de Rudolf Slanski [nota: foi enforcado, juntamente com os seus camaradas condenados, numa execução pública numa praça de Praga] e de mais nove espiões imperialistas, eliminando esse grupo de inimigos do povo checoslovaco e desmascarando, mais uma vez, os manejos dos imperialistas, fortalece a unidade e defesa da Checoslováquia, arma o seu povo com novas lições para a luta pela construção do socialismo, rouba aos imperialistas um trunfo importante nos seus planos bélicos – constitui, por isso, uma grande contribuição para a defesa da Paz e do Socialismo.”
(in “Avante”, nº 174, Janeiro de 1953)
Imagem: Cartoon checoslovaco sobre a “oferta” da “cabeça” de Slanski, numa bandeja, ao todo-poderoso Estaline.
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