Um militar-historiador (*), figura vinda do nível intermédio do MFA, na preparação da revolução e na sua concretização, sempre na sua banda esquerda até ser marginalizado no nevoeiro de Novembro, passou as suas memórias revolucionárias a romance (**).
Como romance, o resultado é assim a modos que um caldo de cozido a puxar para a canja de galinha e com paladar de caldo verde. Mais parecendo um arroubo literário de adolescente a meter brios de candidatura aos jogos florais de um jornalzinho de província. Desastre acabado este, em que se misturam fios de estilo, enredos mal amanhados por puerilmente pretensiosos, devaneios filosóficos, mensagens à Soeiro Pereira Gomes embrulhadas em telurismo à Torga, com um final a galope e o autor à corrida para apanhar a montada.
E, no entanto, neste naufrágio de tentativa romanesca, o livro de Gertrudes da Silva tem um valor inestimável como retrato da “pureza” dos capitães de Abril, na banda dos mais genuínos, dos mais sinceros, dos mais desinteressadamente empenhados. Permitindo uma percepção cristalina da psicologia e da evolução traumática da transformação de oficiais profissionais, profundamente provincianos, que da têmpera da guerra colonial se viram alçados a vanguarda popular de um povo em estonteante mudança com os partidos encavalitados no lombo, tentando manter a lucidez da utopia no meio da bebedeira das ideologias à solta. Debalde e tanto que a revolução os engoliu, os melhores, os mais puros, à cabeça.
A nostalgia de Gertrudes da Silva pode ter várias leituras. Quanto aos sonhos desfeitos mas também quanto ao absurdo histórico de lançar um povo à solta, depois de longamente reprimido, a fazer a festa com bandas militares a quererem acompanhar a música mas com os instrumentos entupidos com autocolantes a gritar que o povo é quem mais ordena. Enfim, uma nostalgia que é resultado do absurdo magnífico que foi o enterro do fascismo como paga da marcha vinda de Braga em 1926. Num e noutro caso, a mostrar os limites da capacidade transformadora das crenças condutoras germinadas nas casernas.
Pela sinceridade demonstrada e experiência partilhada, dificilmente se entenderá o 25 de Abril visto de dentro (nos bastidores das penumbras das sinceridades dos militares curtidas pelas dores das decepções acumuladas até ao beco sem saída) sem se ler o livro de Gertrudes da Silva. Merecendo, por isso, desculpa pelo arroubo de ter plantado nos ombros, desnecessariamente, ridiculamente, galões de romancista.
(*) - Gertrudes da Silva, de seu nome completo Diamantino Gertrudes da Silva, nasceu em Alvite, concelho de Moimenta da Beira, a 20 de Fevereiro de 1943. Em 1963 ingressou na Academia Militar, seguindo depois a carreira de Oficial do Exército, na Arma de Infantaria e cumpriu duas comissões na Guerra Colonial – a 1.ª em Angola e a 2.ª na Guiné.
Na preparação do 25 de Abril e no processo revolucionário que se lhe seguiu, foi sempre membro activo nas estruturas e nas movimentações do MFA. Conotado com a “ala esquerda” (ou “gonçalvista”) do MFA, apesar de sempre ter evitado posições extremadas ou radicais, foi marginalizado após o 25 de Novembro de 1975, ficando-se pelo posto de Coronel (agora na situação de reforma).
Em 1980, concluiu a Licenciatura em História na Universidade de Coimbra.
Para além de outras condecorações, foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade pela sua participação no Movimento do 25 de Abril de 1974.
Publicou três livros sobre as suas memórias militares e político-militares.
(**) – “Quatro Estações em Abril”, Gertrudes da Silva, Edições Palimage
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