No quadro político que levou ao XX Congresso do PCUS, o Gulag não só foi encerrado como passou a haver uma moderação apreciável dos aspectos mais brutais e discricionários dos mecanismos repressivos na URSS. Aliás, logo após a morte de Stalin em 1953, o próprio Béria, o torcionário-mor, alimentando a sua esperança de suceder ao ditador e procurando alijar-se do passado sanguinário próximo do canibalismo policial, desencadeou uma série de medidas “liberalizadoras” da cadeia patológica do vampirismo que sustentava o poder do ditador e seu antigo senhor.
A partir do quadro kroutcheviano, na fase designada por “degelo” pela boa vontade incentivadora de Erhenburg, a repressão do NKVD/KGB perdeu o seu carácter massivo e tornou-se selectiva e sofisticada. Com a recuperação estalinista de Brejnev, iniciada em
[Em 1984, era então Andropov o dirigente supremo da URSS, vindo directamente da chefia do KGB, testemunhei em Moscovo o efeito terrível do “medo psiquiátrico”. Estava, com outros portugueses, numa roda de convívio com um grupo jovial de intérpretes soviéticos que dominavam a língua portuguesa. Brincava-se e contavam-se estórias e anedotas. A um dado momento, um meu camarada português reagiu a uma historieta comentando “mas que grande maluco…”. Fez-se um automático silêncio generalizado e glacial da parte dos convivas soviéticos. Perante o nosso espanto e desconforto, um moscovita explicou vagarosamente: “nunca digam, na União Soviética, que alguém é maluco, cada um de nós conhece pelo menos uma pessoa que, sob a acusação de ser maluco, desapareceu da circulação”.]
Que saiba, os (muitos) psiquiatras comunistas da URSS que colaboraram, sujando a sua profissão de médicos, com o diabólico esquema repressivo de internarem dissidentes políticos em manicómios, nunca foram incomodados nem prestaram contas pelos seus crimes profissionais. Uns tantos sobreviventes andarão por lá ou por aí.
O Dr. José Manuel Jara é, além de comunista ortodoxo e especialista em questões teórico-ideológicas do marxismo-leninismo, um psiquiatra de sucesso (é director de uma das clínicas psiquiátricas do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa). Depois de se ter dedicado à paciente dissecação e estudo dos grupos esquerdistas, sobretudo os maoístas, que proliferaram antes e depois do 25 de Abril, em prolongamento de pormenor da aplicação da tese de Cunhal sobre o "radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista", tendo publicado sobre a matéria várias brochuras e opúsculos. Volta e meia, o Dr. José Manuel Jara escreve no “Avante”, não para zurzir na degenerescência da psiquiatria soviética e dos seus colegas-camaradas transformados em servidores policiais, mas, antes, para velar pela ortodoxia ideológica do cunhal-leninismo como se a União Soviética ainda iluminasse os povos e as suas mentes. Foi no último exemplar deste mesmo jornal que o Dr. José Manuel Jara analisou (avisando à entrada que o leu para o "criticar", não fossem surgir malévolas suspeitas sobre as leituras do ilustre clínico), em minucioso escalpe psicanalítico, um livro de um ex-dissidente do PCP, recentemente editado, numa espécie de relatório “da traição posteriormente confirmada”, o qual seria bem útil a uma polícia de vigilância política no caso de ela existir. Em que até o apelido do autor serve de galhofa de divã. E arrepiei-me, lembrando o silêncio glacial que sentira em Moscovo no tempo de Andropov. Sem razão. Felizmente. Embora, pelo sim e pelo não, seja mais seguro e saudável, para um dissidente com a mania de escrever, ter psiquiatras comunistas bem longe do encalço e com relatório de diagnóstico pronto a disparar.
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Adenda: Este post teve, depois, um tratamento complementar aqui.
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