Se os partidos são o pilar mais forte da democracia, estão longe de a esgotar. E se a cidadania começa na escolha de um partido (por militância ou nas escolhas eleitorais), pobreza participativa será se também aí acabar. E nem o quadro partidário foi feito e acabado para todo o sempre, nem as ideologias, os programas e as lógicas partidárias são imutáveis ou imunes à evolução da sociedade e às vontades dos cidadãos.
A relação dos cidadãos com os partidos, que se tem vindo a degradar em termos de simpatia e mesmo de aceitação, exprime-se bem quando se sabe que só uma ínfima minoria dos que têm simpatia partidária fixa passam ao estado da militância (participação na vida interna) e que a norma nos pleitos eleitorais é que as vitórias e derrotas sejam ambas determinadas pela significativa faixa de eleitores capazes de mudar de voto, isto é, dos que valorizam mais o juízo político do momento que a fidelidade partidária.
Assim, o quadro partidário é uma parte da vida democrática, mas, felizmente, apenas uma sua parte condicionada (subordinada). E isso é bom para a democracia e para os partidos. As concepções partidocráticas deixaram de convencer a maioria. Porque esta sabe que quando a partidocracia usa e abusa do seu poder, e ela tende para isso como qualquer uso do poder, os resultados em qualidade democrática são catastróficos. E o que falta à maioria que recusa a partidocracia é o encontro de forma de intervenção de cidadania que conduzam a dinâmicas que escrutinem os partidos e os submetam à superação dos seus vícios endógenos e uma maior ligação ao pulsar da sociedade civil. Este défice de intervenção para além dos partidos, nos seus jogos eleitorais, levou ao campo aberto da corrupção alimentada pelos partidos, ao clientelismo que o PSD e o PS implantaram para guarnecer e engordar fidelidades partidárias (e que o PCP também pratica em autarquias e sindicatos), à rigidez ideológica eivada de sectarismo do PCP, ao permanente balançar do Bloco entre protesto transformador e revolução. E, nestes domínios, os portugueses não têm muito que se orgulharem com os “seus” partidos. E por arrastamento da má opinião generalizada sobre os partidos, levam os políticos e a política, mais a democracia, na medida em que os partidos se mostram ciosos do monopólio do exercício político, tendendo a confundirem-se.
O fenómeno Manuel Alegre, nas últimas presidenciais, está ainda para ser compreendido e digerido pela classe política. Na exacta medida em que perdura o ressentimento por uma clamorosa vitória da cidadania sobre a partidocracia, nomeadamente pelo crasso erro de casting cometido pelo PS. Mas o livro de balanço da campanha de Manuel Alegre (*), hoje muito olhado de lado, vai ser, mais tarde ou mais cedo, objecto de estudo politólogo incontornável quando da acumulação teimosa de erros se passar ao entendimento da sociedade portuguesa e como funciona a dinâmica política no seu seio, receptiva à erupção de gigantescas bolhas de afirmação política em confronto com as domesticações partidárias. E até o PS acabará por entender como beneficiou, embora contrariado, com o “fenómeno Manuel Alegre” – porque influenciou nas agendas e nas sensibilidades e “devolveu” ao PS muitos dos seus quadros enriquecidos no “estágio de cidadania” proporcionado pela participação, supra-partidária e em companheirismo confluente com outros pensamentos e estar na política, no combate por Alegre.
O caso Helena Roseta é diferente do ocorrido com Manuel Alegre. O contexto não tem nada a ver um com o outro. Os carismas de liderança, embora fortíssimos e determinantes nos dois casos, são diferentes, e as campanhas também. Mas a rebeldia cidadã, anti-partidocrata mas não contra os partidos, é da mesma natureza, no sentido de evitar que os "partidos-eucaliptos" que temos sequem a democracia que importa cultivar, alargando a intervenção nela, forma única de a fortalecer. E Helena Roseta veio, em rebeldia com o PS, resolver três problemas ao PS: 1) fixar eleitorado “socialista” e alargá-lo á sua esquerda, na medida em que pode ultrapassar barreiras de resistência pela profunda antipatia germinada para com a prática desastrada deste governo socialista (amortecendo assim a "erosão socialista", neutralizando a captura, pelo PCP e pelo BE, dos "votos de protesto") e sem beliscar Costa nos votos dos "socráticos fidelíssimos e indefectíveis", esses felizes com tanto talento atabalhoado na arte da mudança; 2) funciona como alternativa á tendência manifestada de “governamentalizar” e “antigovernamentalizar” as eleições para Lisboa (infeliz dinâmica que o PS imprimiu ao deslocar para cabeça de lista o nº 2 do governo e o PCP acompanhou ao anunciar, em eleitoralismo básico, que em Lisboa se vai avaliar o governo), recentrando a discussão sobre os problemas da cidade e sua resolução; 3) se Roseta não ganhar a Câmara (o que está para se ver) vai contribuir, no mínimo, com vereadores de qualidade para a gestão autárquica e amortecer e ultrapassar o efeito do sectarismo do PCP avesso a qualquer entendimento pós-eleitoral com o PS para poder continuar com mãos livres para a agitação social ao serviço da revolução (não em Lisboa, assunto de somenos no âmbito largo do marxismo-leninismo, mas no país inteiro e por esse mundo fora, até que não reste um proletário explorado para amostra).
(*) – “Conseguir o Impossível”, vários, Edições Dom Quixote. Capa na primeira imagem.
Segunda imagem (fotomontagem): roubada aqui.
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