
Conversando há dias com o Rui Bebiano sobre um seu post sobre Ryszard Kapuscinski (famoso jornalista-escritor polaco, recentemente falecido) veio à baila a questão sombria da duplicidade recentemente revelada de Kapuscinki que, a par da sua famosa, longa e prolixa actividade de repórter, acumulava a qualidade de agente dos serviços de informação polacos (filial do KGB).
Para um admirador da obra de Kapuscinski, casos de Rui Bebiano e meu, não deixa de ser perturbador que, enquanto observador de realidades cruciais no mundo, obtendo acessos e cumplicidades como jornalista de referência, o jornalista-escritor polaco tivesse desempenhado um “papel duplo” de agente da espionagem polaco-soviética. E, pela minha parte, sublinhei: “Obviamente que o contrato de informador policial era condição necessária para que o regime polaco o autorizasse a viajar pelo mundo, transformando-o em caso invulgar de jornalista cosmopolita no “campo socialista”. Mas a aceitação da ignomínia por Kapuscinki comprova a natureza perversa do regime (e de um sistema) capaz de transformar qualquer talento (nos medíocres, não admira) num ser transportando uma duplicidade policial. Não deixando de arrepiar, a mim arrepia-me, que o olhar de Kapuscinki que servia o seu admirável talento de observação passada a escrito beneficiava da acumulação dos talentos de um jornalista e um polícia.”. A propósito, o Rui Bebiano lembrou o “caso Günter Grass” (aludindo às muitas décadas em que este escritor alemão, alçado a referência moral do pós-nazismo, escondeu o seu passado de SS quando era muito jovem). O paralelo é oportuno mas tem uma disparidade: Grass demorou demais mas confessou, Kapuscinki pensou levar para o túmulo o seu "segredo pessoal", confiando que os arquivos nunca falariam.
Passados dias sobre esta nossa conversa, o “caso Kapuscinski” volta-me à ideia. Não porque esteja na berra. Exactamente pelo contrário, pelo silêncio indiferente que mereceu e merece de quase todos. Um silêncio que contrasta com a enorme polémica e paixões à solta no rescaldo da revelação dos pecadilhos juvenis-nazistóides de Günter Grass. Interrogando(-me)(-nos) porque razão perdura esta disparidade de julgamentos. Que continua a beneficiar, sempre, o “mal vermelho” relativamente ao “mal castanho”, ou aos “agentes da CIA”. Porque, neste caso, na denúncia das infiltrações da KGB e suas filiais, provas das naturezas essencialmente policiais dos “regimes socialistas”, há uma ausência de manifestação de indignação, quando não piscadelas de complacência. E imagine-se o sururu que haveria por Portugal fora se descobrissem que um qualquer celebrado escritor português tinha sido, comprovadamente, bufo da PIDE. Falando-se até de “caça às bruxas” na Polónia (a governada pelos "gémeos de extrema-direita", procurando-se, assim, diminuir o valor da soberania polaca através do refrão induzido do “fascismo nunca mais”) pelo levantamento impiedoso das colaborações de polacos com a polícia política durante o regime comunista. Resta-me, pois, tirar o chapéu perante o talento dos efeitos duradoiros da propaganda do Komintern na divisão internacional entre “bons” e “maus”.
Caro João
Poderá talvez argumentar que não existem bons completamente bons nem maus completamente maus. Mas ao criticar a dualidade de critérios acaba também por enfermar da mesma.
Ainda que sem disso se aperceber, emprega vocábulos como "ignomínia" para descrever o comportamento de Kapuscinki enquanto que para Grass reserva termos claramente desculpabilizantes como "pecadilhos".
Também não deixa de ser preocupante que se minimize a "caça à bruxas" e se afirme a mesma como um imperativo patriótico polaco, quando comparado com a classificação de "sururu" dada a um eventual "levantar de pedra" sobre uma colaboração com a polícia politica do Estado Novo.
O João interroga(-se)(-nos) e eu tomo a liberdade de (tentar) responder(-lhe). Obviamente tendemos a dar maior relevo àquilo que nos seja mais próximo e que de uma forma directa ou indirecta tenhamos sentida na pele. Assim, as perseguições que hoje se verificam nos antigos países socialistas contra antigos e actuais comunistas, terão raízes no "mal vermelho". Noutros lados, como por exemplo na Europa do Sul, onde (ainda) é recente a memória de regimes fascistas, é perfeitamente natural que se valore mais o "mal castanho". Independendo de juízos de valor é isso que faz sentido
Infrlizmente, em Portugal, muitos acham que essa coisa de ter sido da PIDE são coisas de passado que não justificam sequer uma inquietação, quanto mais um "sururu".
Assumo uma certa "dualidade de prioridades" nas minhas posições (que não passa, nem pouco, por apagar a frente do combate à essência e permanência do "mal castanho" e da sua componente salazarenta). Porquê? Porque a mediatização do "mal castanho", além da notável eficácia com que os judeus souberam evidenciar e revoltar o crime do Holocausto, tudo envolto no embrulho do antifascismo, magistralmente mitificado, permitiu esse passe de mágica de esconder o "mal vermelho" e até inseri-lo, como custo, no combate ao "mal castanho" [anacronismo maior: Stalin assassinou mais comunistas que Hitler!] Outra herança do Komintern tardio é a persistência da diabolização americana e de Israel, de que a russofilia pós-soviética é caricatura maior. E um anti-capitalismo anti-imperialista serôdio que continua a suscitar suspiros românticos em benefício de Fidel e Chavez. E, penso eu, os maiores mitos e aberrações das mentiras e silêncios históricos, os difusos, os escondidos na duplicidade democrática/revolucionária, merecem prioridade no combate. Discutível? Claro. Mas eu, aqui, atendo à minha "agenda". "Bengale" vc com a bengala de seu gosto.
Penúltima nota para a do "pecadilho" de Grass. Claro que foi isso mesmo (como a do Bento XVI). Tem comparação uma incorporação militar com 17 anos num país mobilizado e fanatizado na guerra com a gestão adulta, e sempre escondida, de informador policial com um sistema totalitário coberta pela figura de grande repórter?
Finalmente, a Europa do Sul, incluindo Portugal, esteve (e está) assim tão longe do "mal vermelho"? Ou (ainda) não reconhece que a felicidade democrática maior dos portugueses foi livrarem-se do salazarismo-marcelismo e, à beira do abismo, evitarem a queda numa ditadura mil vezes mais terrível, a ditadura comunista, em que a PIDE seria recordada como um rancho de meninos do coro? Vc tem uma capacidade enorme de vender ingenuidades. E eu não tenho meios, nem eles me interessam, de verificar ou confirmar a sua sinceridade. Mas acredito na sua alma bem formada, sinceramente acredito. Por isso o saúdo e agradeço os contributos. Até à próxima.
É que eu não desato a diabolizar tudo quanto cheira a "vermelho" - ou "castanho", ou "verde"- só pela cor. Você defende, e lá terá as sua razões, que o "vermelho" é pior que o "preto" ( ou, já agora, o "branco"). Isso para mim, e chame-lhe ingenuidade se quiser, não é de forma alguma evidente. É que me incomoda quando nós, "à esquerda", desatamos a querer ser (parecer) mais honestos do que uma virgem.
Eu assuma a herança de todas as patifarias que a "esquerda" fez em nome da liberdade e da justiça. Mas não admito que me venham dizer que foram piores que as malfeitorias feitas do outro lado da barricada. Porque não foram!
Duas notinhas: 1) Não acredito em virgens honestas, acho é que elas se tornam mais humanas depois, após se libertarem de uma peça anatómica que ainda não houve ser que explicasse a sua serventia que não fosse a alegria simbólica de a largar (mutatis, é o que sempre tem feito o comunismo com a "liberdade" e a "justiça"); 2) Vc tem uma data de blogues seus para se entreter, será neles que vc dirá "não admito", aqui acabei de lho permitir uma vez sem exemplo, porque não se entra em casa alheia e desata-se a mudar a mobília.
Touché! Tenho que admitir que tem razão. Fica de lição para a próxima...
Não esquecer o autor de"Cem Anos de Solidão"e a
Ingrid que continua prisioneira
Abraço
Completamente de acordo. Tenho também, quase sempre com limitado feedback, chamado a atenção para essa parcialidade, que, no fundo, revela o fundo de intolerância que, como um vírus, o leninismo introduziu na tradição da esquerda. Ainda há anos, quando saiu o Livro Negro do Comunismo, observei como muita gente - incluindo nela historiadores e adeptos de uma tal de "esquerda de confiança" - se escandalizaram e, sem sequer procederem a uma leitura crítica, trataram de tentar descredibilizar a obra e de negar o inegável.
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