O PCP, na resistência ao fascismo e na fase imediata após o 25 de Abril, exerceu um enorme fascínio nos intelectuais portugueses. Alturas houve, e não foram poucas, que em todos os domínios das artes e das letras, eram inúmeros os intelectuais comunistas. O fenómeno da atracção dos intelectuais europeus (e, numa certa fase, da intelectualidade americana) pelo comunismo está exaustivamente tratado, sobretudo em França (país democrático, a par da Itália, em que este fascínio foi mais intenso e até dominante). A estes períodos de “ilusão”, sucedeu o do chamado “fim da ilusão”. E, hoje, sabendo-se o que foram as monstruosidades dos regimes comunistas, a sua intrínseca desumanidade perversa em que os melhores sonhos da humanidade serviram de fonte de energia e propaganda de disfarce a sistemas policiais, com a escolástica a substituir a dialéctica, numa constante manipulação do labor intelectual e artístico ao serviço dos interesses tácticos de cliques partidárias auto-intituladas de vanguardas operárias mas, no fundo, sedentas de poder bárbaro, por toda a parte ocorreu um desmoronar dessa ligação contra-natura entre criadores e estetas e o maquiavelismo das máquinas comunistas. Hoje, entre os criadores de relevo merecedores desse nome, são raros os exemplos dos intelectuais que persistem na militância comunista. Incluindo em Portugal, onde a maioria da intelectualidade virou costas, com estrondo ou silenciosamente, à direcção do PCP que, entretanto, regrediu para o primarismo do populismo recuperado das catacumbas do anarco-sindicalismo, sem sequer lhe restar uma pincelada viva do saber marxista que, enfim, e nos tempos de Cunhal, sempre decorava uma qualquer boa tirada cultural. Neste quadro de deserção dos intelectuais, o que faz o PCP? O melhor que sabe fazer: mitifica o passado e pinta paisagens, num mundo em vertiginosa mudança e acesso múltiplo ao saber e à criação, que correspondem ao imaginário dos anos quarenta do século passado, em que intelectuais devotos à causa peregrinavam por vilas e aldeias, em serões para autodidactas em sociedades recreativas e em colóquios de iniciação ao marxismo, para regressarem aos seus escritório e ateliers, romanceando, versejando, musicando ou pintando operários em greve, camponesas na ceifa, homens que nunca foram meninos e a GNR a assassinar Catarina Eufémia. Tudo numa dogmática de sentido único e descendente – eram os "que sabiam" que deviam descer, com baraço ao pescoço feito de expiação da afronta burguesa de terem acumulado saberes em ruptura com os laços de fraternidade proletária devida ao analfabetismo popular, simplificando-se e transformando-se em vulgatas volantes (mais com pernas e coração que com as cabeças), junto dos deserdados da cultura, pouco se pedindo como troca em esforço aos que pouco sabiam para que se esforçassem por aprender mais, chegando ao saber pelo trabalho do estudo (alguns, poucos, fizeram-no e em condições de tremendas dificuldades familiares e sociais, mas o grosso do "povo" estava amarrado à fatalidade inimputável da trilogia trabalho-taberna-luta e a que só sobrava tempo para se deitar com a companheira e com ela brincar). E o resultado sistemático foi o nivelamento por baixo, rente ao povo, debitando no intelectual um complexo de classe bem expresso no terrível ónus de ter estudado e criado obra, como se de um crime de condição social se tratasse.
Lendo-se no “Avante” a reportagem sobre o último “Encontro Nacional do PCP sobre Cultura”, ressalta quer a indigência das intervenções e propostas, hiper politizadas e instrumentalizadas ao sabor da agenda política partidária, como do tão pouco que o PCP tem a dizer ao mundo da cultura de hoje (e tanto que há dizer, questionar e inventar sobre tamanha e tão complexa realidade), de que é exemplar a intervenção de Jerónimo de Sousa, de que se transcrevem estes nacos de “mensagem cultural” (autêntico regresso formal à fase da cultura como “engenharia de almas”):
uma confirmação da concepção que temos da Cultura enquanto terreno de emancipação individual, social e nacional, enquanto terreno de intervenção e combate essencial para todos aqueles que, como nós, lutam pela superação, radicalmente transformadora, democrática e de progresso do estado das coisas actual. Julgamos, até, que a luta de massas contém necessariamente em si elementos de importante valor cultural e que – incluindo, como tantas vezes sucede, a criatividade nas suas formas de se organizar e de se exprimir - multiplica o seu impacto, o seu poder mobilizador e a sua repercussão transformadora.
(…)
Um dos traços que marcam historicamente a actividade do nosso Partido, sobretudo nos períodos de maior crescimento da sua implantação, afirmação e influência, é o esforço para estimular iniciativas e movimentos de ordem cultural que, com as suas formas e autonomia próprias, acompanhassem, partilhassem e contribuíssem para a luta emancipadora dos trabalhadores e do povo. É, sem dúvida, essa uma das razões que favoreceram uma tão significativa aproximação e integração no Partido de muitas das maiores figuras da intelectualidade portuguesa, a sua participação activa na resistência ao fascismo, a sua intervenção criadora no Portugal democrático, a persistência no presente, embora crescentemente dificultada, de componentes de orientação progressista em diversas áreas da actividade cultural.
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Nota final: Como o Encontro Nacional de Cultura do PCP foi realizado em vésperas da "greve geral", imagine-se a quantidade de romances, poemas, sinfonias e telas que, sobre ela, vão enfeitar a "Festa do Avante" deste ano, fruto do empenho cultural dos delegados ao Encontro após o Guia lhes ensinar o caminho da realização estético-política.
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