Desses dois anos (1969-1971) enfiado dentro de um fato camuflado a olhar gentes e bolanhas num país ocupado e metralhado, gastando - num equivocado paradoxo - tempos que seriam bem melhor aproveitados a podar a árvore da vida quando esta me oferecia seiva para dar e vender, a apanhar porrada de criar bicho, mandado por um general educado pelos nazis em Estalinegrado e que nunca perdeu o ademane de actor em artes de militarismo prussiano que sinalizava com um vidrinho pendurado num olho, auto-reduzindo-me à expressão mínima de jovem mal fardado feito parvo e perdido a mando colonial de um país a mudar de ditador sem que a lucidez acordasse e varresse os podres do fascismo tuga de raiz católico-clerical, estou finalmente vingado. Porque o Leopoldo pagou-me as contas e deixou-me em dia ao tirar-me da garganta a espinha atravessada da guerra colonial.
Ao olhar e ouvir o presidente de um júri de doutoramentos da Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa comunicar que o Leopoldo - que antes ali tinha depositado e brilhantemente defendido o seu labor de tese sobre a guerra na Guiné, acrescentando história à memória, permitindo que a ignomínia daquela guerra seja vista pelos dois lados e outros que se queiram acrescentar -, era um novo Doutor em História Contemporânea aprovado com distinção, senti-me com as contas feitas. E logo ali, naquela solenidade académica herdada do velho regime, feita para lustre dos bonzos académicos que engraxavam as botas do salazarismo tardio e onde formatavam novas fornadas de elites para as orgias de domínio nos banquetes da opressão fascista-colonial, mas cuja arquitectura (o que aquela Cidade Universitária tem para contar…) muitas vezes escutou os gritos de revolta estudantil a preferir a aventura da liberdade ao bolor da reprodução de castas e os seus muitos passos ligeiros e acelerados da fuga ao trote das botas cardadas da polícia de choque que guardava o regime da iniquidade, um historiador, um guineense, um preto bem preto, um humilde e sábio africano enobrecido com a grandeza da dignidade africana que desafia, pelo saber, a arrogância do academismo eurocêntrico, trazendo consigo a herança da sabedoria longa feita praxis do génio de Amílcar Cabral, desdobrando em tese demonstrada como é que um grupo de nacionalistas africanos derrotou a poderosa máquina do exército colonial português, sem esperar pelo 25 de Abril, pois quando ele se deu já a Guiné-Bissau era um país independente reconhecido por mais Estados que os que tinham relações diplomáticas com o decrépito Estado de Portugal. E quando aquela tão clássica Universidade doutorou o Leopoldo, foi como se Spínola, o grandioso General Spínola, lá no sossego do seu túmulo, levasse com a sacudidela da segunda derrota na Guiné. A definitiva, a que lhe pode dar, se ele a aceitar, o descanso eterno.
Caro Doutor Leopoldo Amado, guineense de cepa e meu caro amigo, obrigado, muito obrigado. Pagaste a minha conta, ela está paga. Falta o livro, venha o livro.
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