Segunda-feira, 28 de Maio de 2007

TRINTA ANOS DEPOIS, HAJA RECONCILIAÇÃO E HISTÓRIA

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Passaram 30 anos sobre uma das mais traumáticas e sangrentas lutas pelo poder nos movimentos-partidos que emergiram nas independências das antigas colónias portuguesas, organizações estas vindas directamente das guerras de libertação e transformadas repentinamente de organizações guerrilheiras, em que o figurino militar predominava, para organizações políticas mantendo uma forte componente militar e a tomarem posse dos Estados criados com as independências, socorrendo-se de um marxismo-leninismo colado à pressa. Refiro-me, é claro, ao “golpe” de 27 de Maio de 1977 e suas consequências.

 

Na tríade dos movimentos-partidos mais importantes (MPLA, Frelimo e PAIGC), sem dúvida que o MPLA era o que se apresentava mais frágil, com um contexto de ingerências mais contundentes, estava profundamente minado por rivalidades internas e cisões e possuía a liderança mais problemática (Agostinho Neto tinha tanto de carisma como de perfídia autoritária). E se a independência de Angola se verificou em 1975 e com o domínio exclusivo do poder pelo MPLA, isso deveu-se essencialmente a que as enormes fragilidades deste Movimento foram compensadas com sucesso pela “ajuda internacionalista armada” (Cuba e URSS, à cabeça) e pelo apoio das “forças progressistas portuguesas” (parte do MFA e PCP). Assim, a tomada do poder em Luanda pelo MPLA e a sua posterior vitória na guerra civil que se seguiu, é, mais que mérito de Agostinho Neto e do MPLA, um dos poucos casos em que, na “guerra fria” de então (no caso: uma guerra bem “quente”), o “campo soviético” derrotou o “campo sino-imperialista” (apoiante da FNLA e da UNITA). Para, pouco depois, com pleno envolvimento soviético-cubano na defesa armada do poder do MPLA, surgir uma nova e grave cisão na cúpula do MPLA, em que se enfrentaram a dupla Nito Alves / Zé Van-Dúnem e Agostinho Neto, culminando numa tentativa de levantamento e golpe de estado. E aqui, surpreendentemente, talvez caso único, como se quisessem desbaratar imediatamente os ganhos “anti-imperialistas” que era a colocação de Angola na órbita do mundo comunista, os aliados “socialistas” de Luanda dividem-se pelos dois grupos em confronto – os soviéticos apoiam os “nitistas” (perdendo a aposta) e os cubanos defendem (e salvam) Agostinho Neto. Muito mistério aguarda a abertura de arquivos para se vir a saber como foi possível que, em 1977, Brejnev não tenha telefonado a Fidel Castro para o informar do golpe que o KGB preparava contra Neto, concertando posições, e Fidel Castro não tenha telefonado primeiro a Brejnev a avisá-lo que ia mandar as tropas cubanas fazer fracassar o golpe e conservar Neto no poder, ajudando a dizimar os angolanos pró-soviéticos. [importantes “dicas” são reveladas no DN de ontem numa entrevista com um antigo oficial cubano, Rafael del Pino, que estava então em Angola]

 

Um mistério adicional que também sobra desta história nebulosa do golpe e consequente repressão é se houve ou não um “dedo português”, ou vários, espetados nos acontecimentos. Havendo fortes indícios que sim, somam-se as perplexidades. É que o PCP era um forte apoiante de Agostinho Neto (foi o PCP que organizou e realizou a sua fuga de Portugal e regresso ao comando do MPLA) e Lúcio Lara, seu adjunto, militara em Portugal, participara no V Congresso do PCP e era visto como um ortodoxo da máxima confiança. Mas, no lado dos golpistas, surge, com força incontornável, a figura de Sita Valles que desempenhou importante papel na agitação, preparação e execução da tentativa de golpe, sendo casada com um dos mais importantes golpistas (Zé Van-Dúnem), tinha regressado a Angola, onde nascera, após ter sido uma destacada dirigente dos estudantes comunistas em Portugal, num inopinado “regresso às origens”. E continua igualmente envolto em mistério o real papel e eventuais equívocos associados de um antigo membro destacado do MFA (Costa Martins) que, refugiado em Angola após o 25 de Novembro de 1975, foi preso e sujeito a maus tratos pela polícia de Neto por alegado envolvimento seu na conjura, tendo escapado do pelotão de execução e regressado a Portugal.

 

Certo é que o golpe “nitista” foi desencadeado e assumiu, de imediato, uma enorme violência por parte dos golpistas. A que correspondeu uma repressão selvática e generalizada, saldada por torturas e dezenas de milhar de execuções sumárias, com a maioria dos cadáveres ainda hoje insepultos e em valas comuns. E, passados trinta anos, mantêm-se a iniquidade, esta enorme mancha sobre o MPLA saído da repressão ao golpe, com o poder angolano a recusar-se a selar com honra e dignidade as sequelas, nomeadamente emitindo certidões de óbito dos muitos assassinados e permitir que as suas famílias recuperem os corpos e procedam aos respectivos funerais. Entre os muitos milhares de “cadáveres desaparecidos”, conta-se o da carismática Sita Valles, a dirigente da UEC/PCP, adjunta de Zita Seabra, como era igualmente Pina Moura, que, nas universidades portuguesas, no período imediato após o 25 de Abril, galvanizou muitas militâncias comunistas entre os estudantes portugueses [sobre a figura de Sita Valles, ler este artigo].

 

Angola necessita de resolver o “problema 27 de Maio” e sarar as feridas que ainda ali sangram. Os historiadores têm muitos caminhos fascinantes a desbravar no imbróglio dos mistérios associados ao golpe e à repressão. Todos à espera de vontades de reconciliação da família angolana e que os arquivos se abram. Para que, da dor e do mistério, se passe à catarse e ao conhecimento desse trágico e sangrento episódio da história angolana (e que, provavelmente, inclui uma página luso-angolana e muitas páginas sobre as formas como a URSS e Cuba geriram, entre si, umas vezes bem e outras muito mal, a geoestratégia dos domínios sobre África).

 

Imagens: Fotos de Nito Alves, Sita Valles e Zé Van-Dúnem, o “trio” no comando dos golpistas de 27 de Maio de 1977, hoje reduzidos a três restos mortais ocultados e a aguardarem sepultura condigna.

Publicado por João Tunes às 03:36
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8 comentários:
De Fernando Van-Dúnem a 28 de Maio de 2007
Perdão, Zé Van-Dúdem e não Zé Van Dúden.
De João Tunes a 28 de Maio de 2007
Mil perdões. Já corrigi. Tenho encontrado muita literatura sobre o 27 de Maio em que o nome aparece como o citara antes. Mas vindo julgo que de um familiar, não hesito em adoptar a designação Van-Dúdem como correcta.
De Rui Bebiano a 28 de Maio de 2007
Caro João Tunes,

Para começar um preciosismo. Creio que a correcção do nome contém um lapso: um 'd' em vez de um 'n'.

Agora o essencial. Acompanhei com alguma proximidade os primórdios deste processo. Estando em Angola em 1975, como militar, estabeleci contactos formais (à revelia da hierarquia, note-se) com alguns sectores do MPLA tendo em vista, entre outras coisas, algumas medidas de carácter logístico. Entre elas - hoje já posso falar disto com relativo à vontade - a entrega de armamento, ligeiro e pesado, capturado pelo exército português após a expulsão da FNLA de Luanda.

Conheci várias pessoas - embora nenhuma das mais conhecidas - que eram absolutamente partidárias de soluções radicais, as quais passavam em primeiro lugar pela «violência revolucionária» mais extrema. Posições com as quais concordava, aliás, embora a partir de um lugar bem mais cómodo. Hoje não tenho a menor dúvida de que, se tivessem sido elas as vencedoras, a barbárie teria sido ainda bem maior (os meus contactos, entretanto, desapareceram todos durante as depurações).

Claro que isto não desculpa nada, mas gostava de insistir no contrariar da ideia, que por vezes tem corrido (não neste post, evidentemente), de acordo com a qual os «nitistas» foram mártires mais ou menos bem intencionados e talvez um pouco «românticos»...
De João Tunes a 29 de Maio de 2007
Caro Rui Bebiano,

Espero que agora, no texto, já tenha acertado no nome.
A questão que coloca sobre as vítimas das barbáries reais e as tentadas é a usual nestes confrontos. O que foi o início da "ofensiva nitista" dá-lhe toda a razão e, em caso de vitória, com troca das vítimas, é muito possível que o rasto sangrento não fosse diferente do verificado e julgo que não contornei esse aspecto no meu post. [muito se especula que se Trotski tivesse ganho a Estaline, as vítimas do trotsquismo não seriam menores que as verificadas com o estalinismo] Mas aconteceu o que aconteceu, as vítimas foram as que foram e os carrascos idem. Agradeço o depoimento da sua experiência.
De Jose Luis Reboleira Alexandre a 29 de Setembro de 2010
Estando em Angola em 1975, como militar, estabeleci contactos formais (à revelia da hierarquia, note-se) com alguns sectores do MPLA ....Por isso o nosso capitão P. Ramos se queixava de que havia infiltrados do MPLA na nossa 3ª Cia.

É claro que estou a brincar meu caro. Só podes ser o Rui M. Bebiano N. Lembras-te do Vague Mestre da Cia, que umas vezes estava no GAC 1 mas muitas mais nas praias da Ilha ?
De RN a 29 de Maio de 2007
Conheci a Sita Vales em lisboa. Ela frequentava a António Serpa e éramos amigos. Era uma rapariga brilhante. Impressionava a destreza na exposição das ideias e no modo de falar. As palavras saiam-lhe sem as partes gagas que todos com frequência usamos à espera da ideia ou da palavra justa.
Também conheci Nito Alves na mesma sede do CC do PCP da Av. António Serpa, certa vez que ele passou por Lisboa. Foi um encontro breve e não deu obviamente para conhecer nem a pessoa nem o político. Mas a impressão que me ficou (subjectiva, parcial, sem dúvida) Não foi boa. Só tratou ali à minha frente numa conversa sem objectivos práticos de objectos que desejava comprar e coisas de que necessitava ou o deslumbravam. Posso estar a ser muito injusto mas foi esta a imagem que me ficou dessa figura tida por tão carismática.
De Arnaldo santos a 22 de Outubro de 2007
Afinal Angola e uma trincheira firme da chacina em Africa , um laboratorio de derramamento de sangue em africa. Quem diria que um presidente medico iria mandar torturar e matar seus colaboradores directos,antes e depois de sobreviver a uma intentona golpista , de acordo com o historial o actual presidente tambem sentiase ameacado pela furia dos servicos de seguranca da altura ,e dificil compreender como um tal partido politico perdeu mais de metade dos seus quadros a quase dois anos apenas de independencia de Angola, agora compeendo porque que tantos dos meus amigos de infancia haviam perdido seus pais, mas ninguem compeendera a real magnitude da situacao , maes encorajam-nos a nao seguir a carreira politica no futuro mas nao podiam dizer por que razao, porque a monstuozidade da situacao era um fantasma permanente durante todo tempo que marcou o nosso crescimento como jovens angolanos tantas mais viuvas nas zonas urbanas de Luanda e por outras cidade em angola , esta claro que o MPLA beneficiou da guerra com a unita para esconder esses fantasmas e pecados cometidos pelo primeiro presidente da republica de Angola , tantas vidas destruidas tanto odio entre os membros recem chegados de Brazzaville e os outros que ja se encontravam em Luanda , isto supera de longe os pecados de Jonas Savimbi quando em 1983 matou membros do seu proprio partido durante um comicio a famosa fugueira , isto explica como Angola era um laboratorio de derramamento de sangue em Africa desde o inicio da saida dos portugueses mas desseram-nos apenas que a culpa era apenas de Jonas savimbi , e dificil imaginar que isto tudo foi bem escondido ate esperar o fim da guerra fria e o fim da vida de Savimbi para comecarmos a ver a aparente coragem de membros do Mpla para ganharem coragem suficiente para abordar a questao tal como ela aconteceu , o numero nunca em nem um pais de africa foram executadas tantas pessoas apenas porque o medico mandou faze-lo e esses capangas do Mpla cumpriram as ordens tal como foram dadas tanto odio , tanta pressa para enriquecer com um falso comunismo cientifico ,agora sabemos que o medico A NETO . apenas otilizou os cubanos para ter o controle de Angola, que vergonha muitos dos nossos pais acreditaram no socialismo apenas para serem torturados e mortos , pensavamos que A Neto era o pai da independencia afinal era mesmo um sipantizante da pequena burguesia como diziam os mais jovens daquele governo na altura, como e que um medico pode ter ordenado tanta tortura em tao tanta escala e nao manter esse segredo por 3 decadas , porque que existe maior abertura agora depois da morte de Savimbi e mesmo de Holden roberto porque tanta , porque que o medico A Neto sobreviveu gracas ao telefonema que fez a Castro ?Qual era o estado de espirito do medico na altura?
como que ele criou campos de concentracao no Moxico , sera que Lucio Lara tera sido o coordenador dos campos de concentracao uma vez que ele e do Moxico porque a maioria dos membros do governo do Mpla estava com muito medo em 1977 , porque que foi aceite que os membros do governo torturassem outros membros do governo central, como e que isso foi possivel como que o medico estendeu as matancas as provincias fora de Luanda governos provinciais? porque que houve dificuldade em ouvir o Nito Alves , na sua tentativa de estabelecer honestidade no seio do partido Mpla, tudo isto e dificil compreender se os actores da cena de 1977 ficarem calados por mais tempo, como e que os torturadores da queles dias dormem em paz hoje , como que muitos daqueles assassinos ainda conseguem sorrir hoje?, como e possivel tanto derramento de sangue no grafanil, quem facilitou tanta tortura , como e que os sobreviventes geriram esse trauma todo durante esse tempo todo , como e que a comissao de inquerito nao chegou a publicar os resultados finais, estas sao pergunatas que qualquer angolano gostaria de saber ? como e que o medico foi fazer-se tratar por medicos sovieticos na Uniao Sovietica, porque que os russos matariam A Neto , como que muitos acham que Eduardo dos Santos foi nomeado pelos Sovieticos e nao pelo comite central do Mpla sera que eduardo dos santos era agente dos sovieticos no governo da altura? sera q Santos e um anjo.
De Sérgio Van-Dúnem a 1 de Julho de 2010
sou um jovem estudante, e sempre preocupei-me em saber um pouco mais sobre as figuras que marcaram a historia do nosso pais, algum tempo atras consegui na internet material sobre nito alves "13 teses em minha defesa". eu muito sinseramente gostaria de saber um pouco a respeito dos outros homens como bakalof, josé van-dúnem, betinho e sitta.

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