Alexandra Prado Coelho (APC) desenvolveu um extenso e competente artigo no último suplemento “ípsilon” do “Público” dedicado à nova vaga de literatura portuguesa sobre as nossas raízes africanas. E situa o previsível caminho de sucesso do romance de estreia de Francisco Camacho [“Niassa” (*)] na neo-literatura pós-colonial inaugurada com um livro de Francisco José Viegas (“Lourenço Marques”). Tratar-se-á, segundo APC, de uma superação, por via literária, das marcas dos traumas da colonização/descolonização como da guerra colonial (segundo APC, essa espécie de via gasta e esgotada). Neste regresso às origens africanistas que amarram, mais ou menos conscientemente, a maioria dos portugueses, nessa ideia do “estivemos todos lá”, junta-se a desculpabilização desse esperado regresso a “África, sem culpa”.
Se pressa mais vontade fossem boas companheiras e melhores auxiliares, APC não só teria razão como se lhe ficaria a dever o diagnóstico certeiro de termos catarse feita e para a frente é que é caminho. Não o creio, contudo. Por razões que indiquei antes e por outras acrescentadas pelo agora celebrado livro de Francisco Camacho. E se o livro de Francisco José Viegas, o tal percursor da “nova vaga neo-africanista”, fraquíssimo e falhado do ponto de vista da criação literária (o que não é o caso deste “Niassa”, muitíssimo mais valioso neste aspecto, autêntico caso bem sucedido de estreia trepidante no romance), foi o iniciador paradigmático desse olhar de superioridade moral de direita perante a pós-descolonização, onde avulta o criticismo cínico condenatório da forma como os africanos construíram e constroem as suas independências, Camacho não lhe fica atrás, pelo contrário. Curiosamente, centrando a caracterização da perfídia colonial em Angola (o massacre da baixa do Cassanje), mas com o ónus centrado nos hiper-colonialistas belgas da Cotonang e com os colonos portugueses até a fazerem boa figura, salta para Moçambique (e por cima da guerra colonial) para obter o contraponto nos desmandos da administração e do modo de vida habitual da nomenklatura corrupta moçambicana. Claro que quem conhece (ou leia as notícias) a realidade dos novos estados africanos e as pós-independências, sabe que Camacho, como antes Viegas, não inventam nada e que já foi escrito, por exemplo, por Pepetela, ou aludido por Mia Couto e outros. Como se sabe da monstruosidade que foi a “Operação Produção”, mandada por Samora e organizada por Guebuza, na deportação “à Pol Pot” de parte da população urbana de Maputo para o Niassa. Como se sabe do flagelo da rapina e crime que recheiam a construção da “acumulação capitalista acelerada e selvagem” nas antigas colónias portuguesas. E muito mais, do pior. Tanto que a muitos romances profícuos podem servir de excelente motivo. A questão, a meu ver, não está aqui, nesta realidade de construção de nações assente na rapina (e quantos estados se construíram sem ela?) ou, no caso vertente, Moçambique, numa rapina de re-apropriação que destrói mais que aquilo que acumula. O problema começa, sim, quando, por insuficiência da localização do passado de rapina e iniquidades coloniais e dessa monstruosidade maior chamada guerra colonial, projectando-se sobre os africanos uma mítica degradação social e humana ao cuidarem de si e da herança igualmente mítica da ordem, progresso e abundância coloniais, olhadas sob a severidade do juízo do homem europeu, mormente nostálgico do romantismo africano e legitimado pela autoridade dos brancos que ali nasceram, criaram raízes e permaneceram como guardiães semi-cafrealizados da civilização justa, a ocidental.
A não perder a leitura do excelente romance de estreia de Francisco Camacho, esse reencontro com as margens do Índico, onde repousam muitas e sufocantes nostalgias, em que o mistério/sortilégio Niassa ocupa o zénite do mito/lenda. Com uma narrativa empolgante, muito bem escrito, a percorrer com a adrenalina máxima de leitura. Embora, além de uma ponta final narrativa perfeitamente desastrada numa forma caótica de embrulhar o livro, entregá-lo ao editor e seja o que deus quiser, se ressinta ainda, ao contrário do que pensa e diz APC, dos buracos na nossa literatura sobre a presença portuguesa em África e cuja catarse continua em demorada fila de espera. Pois talvez só os escritores africanos, os permanentes (e não os de passagem, esses inchados de nostalgia do transitório, muito menos os enfeitados com togas de superioridade ocidental), possam completar as peças soltas dos puzzles, os nossos e os deles.
(*) – “Niassa”, Francisco Camacho, Ed Babilónia
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